CRÔNICAS


Domingo, 23/10/2011


FAZ FRIO EM BRASÍLIA






Faz frio em Brasília. Dezesseis graus, anuncia o piloto do avião. Quinta-feira, outubro, plena primavera. Em terra, primaveras floridas tomam conta dos canteiros largos. Carros apressados passam pelas avenidas. Andar por Brasília me lembra meu saudoso amigo Edson Baffi. Estive na capital federal pela primeira vez em 1986, com ele.
Voltamos outras vezes. Numa delas pegamos um comício-monstro na Esplanada. No palanque Lula sindicalista, Fernando Henrique, Ulisses Guimarães, Leonel Brizola e outros ilustres. Eram tempos diferentes aqueles. Ares de democracia varrendo a aridez brasiliense. Neste dia, soldados armados e cachorros impacientes guardavam os prédios das autoridades.
Andar em Brasília é tropeçar com o Brasil. Pessoas de todos os recantos desse País. Visitantes, funcionários, deputados, senadores, ministros. Você esbarra com eles nos corredores dos anexos. É preciso sangue frio para não saltar no pescoço e esganar aqueles que a gente tem como responsáveis pelas mazelas nacionais.
Dia desses esbarrei em Romário na passagem do Anexo III para o Anexo IV. (Anexos, anexos, anexos... tudo acontece nos anexos!). Outro dia, dei de cara com o excelentíssimo senhor deputado Tiririca e seu séquito. Um bando de puxassacos em torno dele. Aliás, em agosto, tive o prazer de ouvir Tiririca cantando a pleno pulmões no aeroporto de São Luís. Um gaiato tocava violão e ele cantava para todo mundo ouvir. Canta bem, o cidadão. Tem voz boa. Mas cantar no aeroporto?
Verdade seja dita. Fiquei com inveja dele.
Brasília também tem os peitos empinados. Em 1988, acompanhando o saudoso Nelson de Carvalho Seixas, encontrei Plínio de Arruda Sampaio no elevador do Anexo IV. Ambos eram deputados.  Plínio cumprimentou Seixas com meio secamente. A mim nem dirigiu o olhar. Estava à minha frente um homem que eu admirava e que havia entrevistado, tempos antes, com certa euforia. Um intelectual de esquerda. Ali no elevador, estava conhecendo o intelectual arrogante que não se dignava a dar bom dia ou boa tarde a um mortal qualquer num encontro fortuito. Seixas tentou puxar assunto com ele, mas Plínio fez ouvidos moucos, recolhido na sua insigne significância.
Na passagem do Anexo III para o Anexo I, uma moça loira muito bonita, expõe aquarelas com motivos. Luli Ramalho nos recebe, Marcos Alves e eu, com um sorriso bom. Ela é de Vitória (nascida em Anchieta), Marcos é de Vila Velha. Brincam os dois com os nomes dos seus bairros. Ela da Praia do Canto, ele da Praia da Costa. Eu entro na onda dizendo que sou da Praia da Andaló!  Como seria bom se tivéssemos uma praia na Andaló.
Tenho reunião numa casa na Asa Sul. Bem defronte à embaixada da Guiné Bissau. Povo africano falante português.  Mais adiante, está a embaixada de Trinidad y Tobago, país que nos não tão distantes anos de 1970 foi o primeiro a reconhecer a soberania brasileira sobre 200 quilômetros mar adentro no Atlântico. Li isso no Estadão quando era moleque. Nunca mais esqueci das duas ilhas caribenhas que formavam uma nação. Há algo de gratidão nesta memória. Nem sei porque.
Fracassou a greve contra a terceirização dos aeroportos, mas o movimento de passageiros diminuiu. Na livraria encontro algumas pérolas que me fazem pensar no casamento do príncipe William e Kate. Um livro fala do casamento deles como “o conto de fadas do século XXI” (assim mesmo, século XXI e não 21). Faltam 89 anos para terminar o século. Será que até chegar o século 22 nada vai acontecer de espetaculoso com a família real britânica? Talvez ela nem existirá mais.
Quando o duque de Windsor abdicou da coroa para se casar com uma plebéia, todos achavam que era o acontecimento do século no mundo das realezas. Os vaticinadores de plantão não previram Lady Di. Nem Grace Kelly. Muita coisa acontece em um século.
Tomo um chá gelado de latinha e petisco uma porção de minipães de queijo. Lá fora venta frio. Com a paciência dos viajores modernos espero o ponteiro das horas andar no relógio sempre atropelado pelo ponteiro dos minutos. É preciso resignação nos aeroportos, onde ilustres, estrelas e anônimos se esbarram a todo momento. Acabei esbarrando em Içami Tiba na hora do embarque.
Voltar para casa, é tudo de bom. (Brasília, DF). 



Terça-feira, 11/10/2011


MANHÃ NO SALÃO DE BELEZA




Cabeleireiros de roupas pretas, manicures de rosa, atendentes de bege. Uma linha de produção de inspiração fordiana para cuidar de beleza. Carlos e Claudio transformaram um pedacinho do centro da cidade num minúsculo éden de autoestima. Seu bem-estar começa na entrada do salão com a recepção de Cauê e Aline, a moça das unhas escarlates. Há um esmero em nos fazer sentir bem.
De onde estou, folheando uma dessas revistas de fofoca de celebridades vejo o juiz aposentado Sérgio Serrano Nunes cortando cabelo. Ele está bem, corado e cheio de viço. Ele me faz pensar em Julio César Cuginotti, o ex-juiz que amarga seu calvário numa via crucis que parece não acabar nunca.
Dr. Sérgio me recordou uma bela reportagem escrita por Ernest Hemingway nos anos de 1920, publicada no Toronto Star ou na Newsweek e republicada no livro “Tempo de Viver”, organizado por William White, narrando a ação benemérita dos barbeiros de Barcelona que cortavam cabelos de graça na rua. Talvez a cidade deva se espelhar nas Caravanas da Cidadania, esquematizada por Telma Maia, na Acirp, para oferecer mais serviços de graça às pessoas no centro da cidade. Anda faltando efervescência nas manhãs de sábado em Rio Preto.
É um bom ponto de encontro de jornalistas. Na semana passada tropecei com Gianda Oliveira, ontem foi a vez de Carol Soler sentar-se ao meu lado para dar fim a cutículas e unhas compridas.  Minha manicure, usando o diminutivo Isa, viaja todos os dias de Potirendaba. Vem e vai de ônibus. Confidencia que quer vir à Expô neste ano, mas chega tão cansada em casa que perde a vontade de se arrumar e voltar.
Um exército de pessoas de preto e de rosa está a postos para atender o cliente que chega, com hora marcada, expediente que não cabe em mim. Estou muito distante de ser um lorde inglês. Sei que é falta de educação, mas ainda não aprendi a chegar pontualmente nos lugares. Vou enroscando na calçada, proseando com um ou outro conhecido. O vereador Nilson Silva diria que sou uma verdadeira curva de rio, onde tudo vai se enroscando.  Marcelo Gonçalves é outro que não consegue andar dez metros sem parar.
De onde estou observo o movimento. A cabeleireira Renatinha esbanja simpatia e rara beleza. Toda vez que a vejo está mexendo na cabeça de alguém. Não lhe faltam clientes. Não vi o moço loiro que tem cabelos mais bem cuidados do que a maioria das mulheres que conheço. Devia estar de folga. Uma mulher usa máscara para se proteger do formol. Está fazendo escova “alguma coisa” que não sei definir. Tem escova progressiva, tem escova marroquina. Descubro que tem todo tipo de escova. A inteligente, que pode lavar o cabelo no mesmo dia; a americana para as mulheres que tem cabelos crespos mas querem alisá-los sem deixá-los chapados; tem a escova zap e, pasmem, a escova chocolate! Chocolate com morango. Se o namorado ou marido for um chocólatra inveterado como eu, a mulher vai ficar careca!
E tem a tal da chapinha. Minha pergunta básica é por que ninguém está contente e satisfeito com o que tem? Quem tem belos cabelos crespos querem alisa-los. Quem os tem lisos, querem encaracola-los. O leitor lembra da permanente? E os bobs? Quem será que inventou o bob? Com certeza algum americano dos Estados Unidos (há americanos de pelo menos outras vinte nacionalidades).  Para sorte das donas Florindas, agora tem baby liss... – nem me perguntem o que é isso. Vi na internet.
Eu acho que os homens deviam ter o direito de usar esmalte colorido. Com o requinte da francesinha. Desde quando o uso de um esmalte na unha vai definir o nível de macheza do cidadão ou a opção sexual de alguém? O preconceito é mesmo digno de um bolo de matéria fecal.
Enfim, penso que todo homem devia passar pelo menos meia hora de sua vida num salão de beleza. É uma experiência única.





Domingo, 02/10/2011


O FIM DA ERA MODERNA




A Era Moderna se encerrou com a queda do muro de Berlim. Estamos agora iniciando uma nova era no planeta Terra.  É a era do conhecimento, das ideias e da evolução cósmica, que permitirão aos seres humanos vivenciarem um novo ciclo evolucional por meio da revolução noética.  Já estamos mergulhados neste novo ciclo, mas a humanidade ainda não sabe. Caminhará pelo conhecimento – caminho mais lento, mais vigoroso – ou pela dor, num caminhar mais rápido, porém inequívoco.
Nossa missão é conduzir o planeta para a noosfera, ou seja, para a camada imaterial de saberes e conhecimentos que envolve a Terra sobrepondo-se à sociosfera. A noosfera foi cunhada por Teilhard de Chardim e designa, de forma genérica, o conjunto das redes de ideias e de conhecimentos em que se desenvolvem, segundo Marc Halévy, os processos de criação, memorização, transformação e transmissão dos noemas. Tudo isso iremos explicando, comentando e discutindo a partir de agora, mesclando política, cultura e literatura, até porque tudo e todos estão interligados e são coexistentes.
Entrar na era noética é sair da era moderna, baseada e ancorada na sociosfera. Sair da era do consumismo desenfreado, do mundo das aquisições e dos supérfluos, dominada pela teorias econômicas e pelo fazer político cujas estruturas estão corroídas pela mentira, pela sedução do ganho fácil e pela corrupção. Os mundos econômico e político da noética diferem muito dos modelos que conhecemos e devem encaminhar a humanidade a um patamar diferenciado, por meio de novos paradigmas: menos pressa, menos velocidade, menos ganância, menos apego aos valores materiais e mais atenção para as pessoas, para a família, para a natureza com tudo o que ela gera e produz. Sobretudo, mais respeito às instituições que lidam com os seres vivos.
Com a noética, vamos rever nossos conceitos de poder e de governo, de democracia e de política. Rever nossa forma de usar dinheiro, gastar o tempo e avaliar valores, sejam eles espirituais, culturais ou políticos. A noética nos colocará novamente em contato com a natureza, por meio da verdadeira ecologia e não pelo ecologismo partidário tão em moda nos últimos anos; vamos retomar o equilíbrio com a mãe Terra, destruindo o humanismo forjado no aristotelismo e no contrato social de Rousseau. Chega de ISMOS. Comunismo, liberalismo, socialismo, catolicismo, evangelismo, protestantismo, islamismo e tantos outros ismos que por aí campeiam como a grande salvação do homem.
Chega de Aristóteles e Platão, de Marx e Adams, de Hobbes, Locke e Rousseau. Voltemos a Heráclito, Zaratustra, Gautama, Jesus sem Paulo de Tarso e sem Roma, Osho, Nietzsche, Bergson, Fritjof Capra, Reeves, Vladimir Vernadsky, Dalai Lama... Outros ensinamentos, outros caminhos. Tendo em mente sempre que o caminhar é muito melhor que qualquer caminho. 



Quinta-feira, 29/09/2011


SAUDADE DE COSMORAMA


Que ano foi aquele? 1967 ou 1968? Não me lembro, mas recordo-me muito bem dos buracos retangulares abertos nas ruas. Meu pai, o Tiguera, andou descendo e subindo enxadão e pá na terra vermelha. Depois vieram os tubos de concreto, grandes e enormes, e nós, moleques de seis a doze anos, brincávamos dentro deles, como tatus andando de gatinhas por debaixo das ruas. Os buracos foram feitos para receber as galerias pluviais e depois a grande novidade, o objeto de desejo das donas de casa: o asfalto. Acho que o prefeito era o Cristóvão Melhado.
Nós morávamos ali na avenida São Paulo, atual Rafael Sabadotto. Minha avó Chiquinha e meus tios Paulo e Oscar ocupavam a casa grande, alugada do Edgard Matiel. Meus pais moravam na casa menor. Na frente, do outro lado da rua, Ermínio e Lourdes Féboli. Do lado direito da casa deles, o Hotel Municipal, da dona Cida e seu Eugênio. Do lado esquerdo, o sobrado do Gelindo Sabadotto. Do outro lado não era diferente. Na parte de cima, o seu Anésio, dentista, e do lado debaixo, duas casas, a do sapateiro Cesar, pai da menina Miriam, e mais embaixo, a casa do Chico Balão, que era ferreiro, irmão do Tião Balão. Assim era aquela rua, naqueles tempos.
E lá se vão 40 anos.
A memória parece de ontem. Fotografando tudo. Fernando Féboli (o Tina) e eu fazíamos uma dupla interessante: ele era um menino louro, de cabelos de finos e dourados; eu era moreno, magrinho, de cabelos negros abundantes e ondulados. Fazíamos arte pelo quarteirão inteiro, até chegarem outros meninos, como o Itamar Mariano dos Santos, o Maurício do seu Marcílio, o Luizinho primo dele, o Pico que era primo do Tina, o Tião e o Cuca, filhos do Elpídio (companheiro de cachaça do meu pai) e o Helder (com ou sem h?), filho da dona Carmem, que considerávamos a mais brava de todas as mães.
Encontrei Cosmorama na Wikipedia. Texto histórico curto. Diz que a cidade tem duas pessoas famosas: Luiz Marinho, prefeito de São Bernardo do Campo, e o ator global, Eduardo Di Tarso. Bravo. A cidade digital reconhece os filhos registrados nela. Mas precisa conhecer também aqueles que nela viveram sem nela terem nascido. É o caso do médico Adão Pereira Nunes. No Rio de Janeiro, o Dr. Adão é nome de Unidade de Saúde, de CIEP e de hospital público, é nome de rua também. Foi comunista, mas era, antes de tudo, humanista. Legou para a cidade o hospital (com jambeiro vermelho nos fundos) e ajudou em construir o templo da Igreja Católica. É paradoxal, um comunista construindo igrejas!
Fugindo da caça aos comunistas levada a efeito por Getúlio Vargas (que o lembrem as memórias de Graciliano Ramos, Olga Benário e tantos outros!), o Dr. Adão encontrou abrigo, carinho e hospitalidade na pequena Cosmorama daqueles longínquos anos 30. Nada mais justo que retribuir. Ele e seus amigos. Como Vicente Aires, que em 1946 recepcionou em Rio Preto, ao lado de Tavares de Almeida, o cavaleiro da esperança, Luiz Carlos Prestes, em campanha para o Senado.
O Dr. Adão foi deputado federal, intelectual de escol e tenho, na minha pequena biblioteca, um livro dele, “Conversa de Plantão” (Editora Paz e Terra, 1978), com apresentação de R. Magalhães Júnior, da Academia Brasileira de Letras, e orelhas escritas por Raphael Zambrotti e Jorge Leão Teixeira. Na página 112 tem uma crônica ambientada em Cosmorama, narrando a epopéia de Ramon Paraguaio (Ramón Cespedes Ramos), fugido da Polícia por suspeita de ser portador de lepra. Uma história merecedora de prêmio Nobel. Será que o Dr. Adão foi amigo do seu Zé Gomes, da máquina de arroz?
Os anos correm, a fila anda.
Ah, Cosmorama, Cosmorama! Que saudade tenho do seu jardim com seus grandes flamboyants dominando o cenário da praça Bandeirantes (ops! praça Antonio Cândido Borges). Que saudade de suas ruas de terra e o caminhão de água-rua dirigido pelo Branco e nós, moleques, pegando rabeira, molhando os pé de barro... do Mário Japonês que quando bebia atormentava a vizinhança e dava baile no soldado Pica-Pau (ops! de novo, meu admirado amigo Alcides Tonin!). E a Maria Sete Facadas, o Osvaldão, o Luizinho Bobo que de bobo não tinha nada, o Zé Tita, o Pedrão e o Flechinha (ou seria Flexinha!), e o Zuza com seus cabelos brancos e o eterno paletó sobre os ombros, e o Anúncio di Bianchi, o Casinha. Como eu achava chique o nome dele: Anúncio. Me lembrava um herói saído de alguma página de Alexandre Dumas, o filho.
Saudade e nostalgia são as coisas que mais tenho em mim de Cosmorama. Saudade dos amigos queridos de infância e adolescência, nostalgia de tempos que não voltam mais. Nostalgia da Tripan, dos irmãos Garcia (Felão, Nelson e Zé do Cinema); do Dínamo EC formado pelo Mauro Bonfim com os nossos craques Baianinho (Valdecir Magri), Bodinho (Newton Sabadoto), Capitão, Dula (que mudou para Americana), o goleiro Gordinho (Gilmar Baraldi). Sem contar os craques do CAC, como o Valcir, o Nilo, Julinho Stachissini, o goleiro Claudio (barbeiro de profissão), Nande Guerelli, Vado, Dorvo, Cutita, Moacir Buzzo, o Pintarroxa, o Neguinho que também era goleiro, o Moisés que era craque da antiga assim como o Roxinho... e aquele uniforme lindo do CAC, branco e vinho como o Juventus da Moóca. E eu vendendo picolés pra dona Antonia, do seu Ernesto Lourenção, pai da Dayse.
Este é convite ao passado. De quando o Bolão tocava violão na escadaria da Igreja ou na esquina, ali no alpendre da dona Lidia. Todos reunidos em volta da sua música. Cidinha, Angela Parreira Duarte, Mara Belila, Fernando Dominici, Plação, Mel e de vez em quando uma serenata na janela do Buião ou do Nivaldo Latorre (perdão se escrevi o nome errado) e recordar tudo isso me fez lembrar de quando fui aprendiz de alfaiate (olha só!) com o Tiãozinho e o Deoclécio, filho do seu Otavio que fazia uma geléia de mocotó de lamber os beiços. O Deoclécio era craque de sinuca. Assim como Jerominho Belan era o craque da boccha, o Foguinho do truco e o Dácio Bacani do samba no pé. Fui aprendiz de alfaiate quando o hit de sucesso era “A Praça”, do Ronnie Von.
Vamos passear na rua do centro, a Vitório Stachissini daqueles tempos, antes da Tripan. Numa esquina, o bar do Pedrinho Benevente, na frente da Loja Moderna, e ao lado da Serrana e a loja do seu Elias, logo depois a Farmácia Portugal, da mais bela das mulheres daqueles tempos, a Maria Augusta, professora. Ai vinha o bar do Ponto e acho que tinha também o bar do Toti. E a loja do Tico. Na outra esquina o supermercado do Zé Fernandes, pai da Julia e tio do Maria Julia (mocinha de grandes olhos verdes). Mais um pouco, pra frente, a padaria do seu Toninho, pai do Nilvo, onde trabalha até hoje o Cido Padeiro. Hum... lá também trabalhou o Zé Padeiro, que casou com a Edna, irmã do Toninho Furtado. Até o Pedrinho Baradelli cilindrou massa lá.
Ah... gente, lá ia eu esquecendo do seu Gurim? Genial pai do Gureba. Por falar em genial, como esquecer o Vitinho, o Mauro Baraldi, Serginho e a dona Alda? E o professor Damião? A dona Rachel, que não titubeava em descer a mão em aluno peralta (ela me levantou uma vez pelas orelhas). E dona Nely, minha primeira professora, mulher do Barulho da banca de revista, e mãe do Hermes. E a magnífica biblioteca do pai do Tadeu Vezzi? Foi lá que li “Madame Bovary” e tomei contato com a mulher de trinta anos de Balzac! Não posso me esquecer do cinema, bem na frente da casa da Magali Melhado. Gosto da época em que era do Zé do Cinema e que a porteira era dona Luisa. Eu vivia lá. Às vezes ao lado da bilheteria, um pé sobre o outro pé, descalço, pedindo trocados para comprar o ingresso. Zezo Gobeti (se a memória não me trai!) às vezes me comprava o ingresso e ai eu podia assistir um filme inteiro. Caso contrário, esperava dona Luisa me por pra dentro, com meio filme rodado. Meus tempos de cinema paradiso.
Bom relembrar Cosmorama. Eu vivo brincando quando estou nalgum vôo da TAM, nas inúmeras viagens que tenho feito nos últimos tempos, dizendo que o avião vai fazer “baldeação” em Cosmorama. E não é que tem gente que me olha assustado! E ai eu digo, Cosmorama, onde se come o melhor doce de leite do mundo (do Celso Bacani) e o melhor frango recheado com guariroba do Brasil (na nossa quermesse de Santo Antonio). Quem conhece Cosmorama ri e entra na brincadeira. Quem não conhece quer conhecer. Ovasco Resende, presidente nacional do PRP, costuma dizer que sou “o maior embaixador” de Cosmorama. Eu falo da cidade em cada palestra que tenho ministrado, seja em Manaus, João Pessoa, Fortaleza ou Vitória. Cosmorama é minha Rimini.
Mas eu não posso deixar de falar do sol que se derrama sobre a cidade quase que o ano inteiro. Eu passei a infância vendo o sol brilhar nos telhados vermelhos da cidade. Toda manhã eu fazia o caminho entre o sítio do Faceto e minha casa, no quarteirão do Matiel, levando leite numa chaleira de alumínio. Como era belo ver o sol nascer e se espraiar sobre a cidade. Claro que não sabia nada disso naqueles tempos de criança, mas tudo aquilo está vivo na lembrança e parece que a cada ano vai ficando mais vívido e mais colorido. Seu Jordão, cuja semelhança com o professor Alvo Dumbledore não é mera coincidência, certamente diria que o avanço dos anos torna a memória mais viva. Quem assim seja! Sua benção Geraldo Rodrigues, no seu cantinho do céu; sua benção Gervásio Stachissini, pessoa abençoada que Deus colocou no meu caminho; sua benção dona Lidia e obrigado pelo quadro maravilhoso que enfeita a sala da minha casa ao lado de Jocelino Soares, Irineu Melzi e Orlando Fuzilnelli. A sua benção, Cosmorama querida!


Segunda-feira, 25/08/2008


A PASSAGEM DA BOIADA

Era tarde e o sol descia atrás do horizonte, pras bandas de Álvares Florence. Minha avó, dona Chiquinha, e outras mulheres, catavam lenha na pastagem que margeava um resto de mata virgem da fazenda de Belisário Borges.
Estávamos numa velha estrada desbarrancada, já tomada pelo capinzal. Diziam os antigos que era um pedaço da antiga estrada do Taboado, abandonada depois da abertura da moderna Boiadeira, em 1915, com novo traçado, acompanhando de perto os varjões do São José dos Dourados.
Cosmorama surgiu no final dos anos 30, começo da década de 40, no caminho entre Tanabi e vila Monteiro (antiga Igapira, atual Álvares Florence), e foi palco de passagem de grandes boiadas com destino a Rio Preto e ao Frigorífico Anglo, em Barretos. Eram enormes comitivas que demandavam de Minas e Goiás.
Muitas lendas acompanhavam aquela velha estrada, em especial as façanhas dos peões em seus pousos e folgas. Uma delas, era a morte de Maria Loira, que ganhou fama no sertão como dona de casa de meretrício. Perto de uma pousada de peões sempre havia alguma mulher oferecendo um pouco de carinho para espantar o cansaço e a solidão da jornada.
Um peão apaixonado teria dado um tiro nas costas de Maria Loira quando ela saltava a janela na busca de se salvar da fúria do amor ferido, quiçá rejeitado! O fantasma dela, diziam os mais velhos, costumava vagar em certas noites sem lua nos primórdios da história cosmoramense e, na quaresma um galopar de um cavalo invisível podia ser ouvido nas ruas da cidade em altas horas. Era a atormentada alma do peão em busca do perdão de sua amada assassinada sem nunca lograr sucesso. Sua agonia era galopar na quaresma e a dela era vagar nas noites de breu.
Mas, naquela tarde, o que ouvi e vivi marcou para sempre minhas lembranças infantis. As mulheres preparavam seus feixes de galhos secos, bons de queima, quando uma delas avisou que vinha chegando uma boiada. Todas correram e passaram pela cerca de arame farpado para se proteger.
Não entendi nada, não vi nada, entretanto registrei o susto e o pavor que tomaram conta dos semblantes daquelas senhoras avós quando se escondiam atrás dos arbustos. Era coisa séria, pensei, tentando ver de onde vinha o gado.
Naquele instante senti o chão tremer sob meus pés, como se uma enorme manada de bois estivesse passando a um metro de nós, na estrada velha, em ritmo de estouro. Sem ver e ouvir nada, sentindo apenas o tremor do chão, atirei-me para a proteção da primeira moita.
Cada pessoa ouviu ou sentiu algo diferente. Minha avó contou que ouviu o estalo dos chicotes e os gritos dos ponteiros. Outra mulher ouviu os berrantes ecoando no meio do estouro, outra ouviu o mugido das reses e o latido dos cachorros, enquanto uma quarta disse ter ouvido os sinos da vaca madrinha...
Todavia, todas sentiram o chão tremer e chegaram a tapar o nariz por causa do cheiro da poeira levantada pelos cascos do gado e dos cavalos.
Passado o susto e o pavor, uma delas virou-se para minha avó e disse:
— Essa foi das grandes, né, comadre?
— É, foi. — respondeu dona Chiquinha, apertando seus olhos verdes enquanto ajeitava a rodilha de pano sobre a cabeça para carregar seu feixe de lenha; e fez-se o silêncio.


Sexta-feira, 22/08/2008

FRANGO COM GUARIROBA


A idéia é de Luiz Carlos Mattos e o pessoal lá de Cosmorama, se for verdadeiramente empreendedor, pode transformar isso numa grande festa e colocar a cidade no roteiro turístico-gastronômico do Estado. Mattos sugere aos organizadores da quermesse de Santo Antonio que escolham um dia do ano (10 de outubro, dia da fundação da cidade) para fazer a Festa do Frango com Guariroba (que nós, caipiras, chamamos de gairóva, com acento agudo e tudo!). Aqui entre nós, sem nenhuma propaganda enganosa, não existe, em lugar nenhum do mundo, frango recheado com guariroba igual ao de Cosmorama.
Tem também o doce de leite em barra, branquinho e tenro que derrete na boca, aguçando as papilas gustativas dos paladares mais refinados. A receita original era do seo Osvaldo, que morava numa grande casa de pau-a-pique no caminho da Água Amarela. Diversas vezes fui ao sítio dele para comprar seus doces. O de leite era feito num grande tacho de folha-de-flandres sob a sombra de uma árvore frondosa (não me recordo se era um tamarineiro, uma figueira ou uma seringueira). Seo Osvaldo já partiu deste mundo, mas seu doce continua sendo fabricado, agora pelo Celso Bacani, que não deixou a peteca cair em termos de qualidade.
Um prefeito empreendedor (by Sebrae) transformaria Cosmorama na capital nacional do doce de leite. Incentivaria a formação de uma grande cooperativa de produtores de leite para fabricar o doce em grande escala, vendendo-o em todo o território nacional. Excelentes vendedores não faltam na cidade. Nem os caminhões para transportá-los. Gente com espírito vencedor também não falta.
Por falar em gente cosmoramense que empreende não posso esquecer de Valter Gardini e Vitório Tino (Vitinho). Quando moleque, lá pelos meus onze e doze anos, acompanhava meu pai nos serviços de carregar e descarregar tijolos para o Gardini. Ele começou assim, com uns caminhões mais antigos. Lembro-se especialmente de um. Penso que era um Chevrolet de cor bege. Fomos uma vez buscar tijolos pó-de-mico numa olaria em Aparecida do Taboado. Moleque metido a besta me senti importante conhecendo o Mato Grosso, então sem o Sul.
Mais tarde, na flor dos 17 anos, foi trabalhar com Vitinho e Mauro Baraldi na Distribuidora Genial. Foi o melhor emprego da minha vida. Andava viajando, partindo de Cosmorama para vários pontos do país. Ponta Porã, Miranda, Cáceres, Barra dos Bugres, Xinguara, Jacundá, Estreito, Araguaína, Conceição do Araguaia, Janaúba, Porteirinha, Guanambi, Coromandel...
Lembro-me da primeira vez que estive em Pedro Juan Caballero, no Paraguai. Imaginei na época: minha primeira viagem internacional. O tempo correu, as coisas mudaram, o homem inventou o computador, trouxe o celular, acabou-se a Guerra Fria, a União Soviética se esfacelou, o muro de Berlim caiu, Israel construiu seu próprio muro, Cosmorama ganhou três bairros novos, Stroessner desapareceu nas brumas do tempo... e minha viagem internacional continuou na primeira. Por isso eu gosto tanto de Pedro Juan Caballero. Pois é a única cidade estrangeira que eu conheço.
Coisas de um cosmoramense. Tão boas quanto o frango com recheio de farofa de guariroba, com sua carne tenra e macia e seu cheiro pra lá de peculiar. Nesse ano, os organizadores da festa de Santa Antonio erraram a mão acrescentando aquele frango assado seco e sem tempero. Para comer este tipo de assado não é preciso ir à festa, basta ir a qualquer boteco de esquina. O que diferencia a festa é o frango com guariroba. Perdendo essa referência gastronômica, a festa será somente religiosa e ponto de encontro de amigos que se vêem de ano em ano.
Luiz Carlos de Mattos é um homem cheio de idéias. Ele sonha também com a construção de um Arco do Triunfo, à moda parisiense, em São José do Rio Preto. Eu lhe disse já ficaria contente com a torre da Catedral de São José que nunca saiu do papel.