Dois de junho, numa manhã outonal,
O sol deflorava o resto de frio,
Taumaturgo e silente como as águas
Escuras de um rio corrente em noite sem lua.
Eram dez horas. Talvez um pouco mais.
Docentes e discentes deambulavam
Pelo pátio de verdes gramíneas
Quando eu, sôfrego e trêmulo,
De coração aos saltos de fâmulos,
Toquei pela vez primeva seus lábios...
Lábios vermelhos de generosas curvas,
Sensuais como morangos maduros,
Doces como mel de Javé na aridez dos desertos...
O contato com sua língua de leve aspereza
Levou-me ao éden em relâmpagos segundos
Enquanto debatia-se minha alma no
Turbilhão sensual de sua pele macia.
Ah, dois de junho de todos os tempos!
Cem anos viverei e em todos te lembrarei.
Cem vidas posso ter e em todas te invocarei.
És a mulher que eu amei, amo e amarei.
Construí em ti o ódio de ora sentes
Odeie-me, eu quis e quero isso,
Pois sou tão dono de mim quanto os
Beijos que não mais de ti posso ter.
Antes, quando o fim tornou-se início,
Afastava de mim a névoa de tua imagem
Como fumaça de cigarros fumados,
Mas hoje, tantos tempos de tempos após,
Busco-te e não encontro;
(Quero e não posso),
Sonho sonhos que derivam de mim
Como um vago pingo trêmulo o mar-oceano.
Tudo o quanto fui, ou quanto sou, ou que penso ser
Ou que pensarei ser perpassam,
Lépidos como libélulas brejeiras,
Por sua imagem bonita oito mil vezes ao dia.
Não mais fujo de ti como súbita perda de luz.
Inquieta-me, em mim, peito adentro,
Uma saudade de um futuro não vindo,
Uma dor de perda dos filhos não nascidos
Como os nossos boiando em águas de vácuo.
Como dói a dor dos ausentes seres do nosso ser!
Quero a morte, sonho a morte em vida,
Mas morrer me horroriza como os olhos vendados
De quem tateia no breu da longa noite sem luar.
Inquieta-me esse sentir sem sentido,
Esse tato cego que esgana meus sonhos
Como as mãos perdulárias da morte afoita.
Por que não há em mim o poder mágico
De retroceder o tempo e tudo corrigir?
O mundo é de quem não sente, diria, no
Auge do estertor do sofrimento infindo.
Teus olhos queimam minha memória afônica
E tua voz penetra-me as entranhas
Como o fogo que antes incendiava nossos corpos.
Meu coração irrequieto faz piruetas quando
O dia dois de junho desponta nas calendas
Como se um ser divinal no mês marcasse a fogo
Essa data prenhe de tanta saudade e dor.
Recorro ao mestre Fernando para ilustrar
Na Pessoa de seus escritos o meu consolo
Neste dois de junho de novo século:
Para realizar um
sonho é preciso esquecê-lo,
Distrair dele a
atenção. Por isso realizar é não realizar.
A vida está cheia
de paradoxos como as rosas de espinhos.
Agora que nada mais aspiro nem quero,
Como um velho de polainas gastas e sujas,
Tal qual o animal ferido e deixado à morte,
Antevejo o futuro perdido e sei o que perdi,
Porque perdi e onde e quanto e tanto que perdi.
São tantas as perdas que temo o quanto valho,
Tanto quanto fiz para que você visse, olhasse e
gostasse,
Nada mais importa, nem importância terá.
Poder-me-ia implorar seu perdão,
Não mais o quero, nem dele mais preciso.
O maior castigo de quem erra é o erro persistir em
viver.
E tu vives em mim, cada dia, cada segundo, em cada
sonho.
Todo dia a memória me maltrata
E minha lágrima contida é uma chama ao vento.
Lembro-me de teus lábios partidos, fruto da violência;
As escrófulas nos olhos roxos e a lágrima alcalina
E límpida descendo na tua pele de seda branca.
Quanto doeu em mim cada marca, cada gesto.
Amarguei a inapetência e a impotência dos meus braços
E me vi como se vê em fúria o animal aprisionado.
O que nos impediu, naquele instante tão severo,
De fugirmos para o ninho que estávamos construindo?
A quem queríamos - servis como mujiques - agradar?
De quem fugíamos e para onde esconderíamos nossa fuga?
São respostas sem perguntas, como o leito seco sem
chuva.
Ah, que fardo pesado é o desprezo!
Que agonia angustiante é a indiferença!
Quem viveu, sabe.
Quem não viveu jamais saberá como ferem os
Dardos pontiagudos do menosprezo,
As palavras atravessadas e o mau dos olhares ruins.
Nada disso reservo ao pior inimigo meu.
Sobrevive a debilidade, o sonho malsinado.
Eu sou o mal; sou o demônio redivivo.
Amei e por amar deixei de lado meu amor.
Por amor eu fugi do meu amor
Mas como dói e como doeu essa dor que não morre,
Essa dor escandalosa que urra no meu coração
Dia a dia, noite a noite, hora a hora... por segundos,
Como se eu estivesse agrilhoado no mais adusto
Círculo infernal de Dante!
Sou o fígado corroído de Prometeu,
A mão infeliz na caixa de Pandora,
As costas curvadas de Sísifo,
Os olhos cegos que tudo veem de Tirésias...
Sou a pedra na testa de Golias
E a palavra correta na boca de Cassandra.
Não mais quero a poesia, nem mais escrevo.
Há muito perdi o bafejo das musas
Nem mais cores distinguem meus olhos secos.
Quando a saudade me afugenta de mim
E minha alma tresandada se encafua acuada,
Busco seu rosto belo e seus verdes olhos
No mais recôndito e fundo rincão do espírito e,
Contemplando, amparo meus sentidos,
Amargando o amargor da perda irreparável.
Não mais quero amar como amei.
Não mais quero abandonar o meu amor.
Não mais quero morrer de amor.
Quero apenas o sabor vagaroso e o
Torpor do vinho inebriante a fustigar para longe as
saudades de ti.
Deixe-me ver-me ridículo e só,
A comer e vomitar a saudade como um
Pantagruel voraz e acéfalo comendo o próprio vômito
Embalado no celofane roxo e
Mórbido da saudade imorredoura.
Dois de junho, dez horas, uma manhã de outono,
Meu corpo treme e meus lábios sequiosos procuram os teus
E os teus, vermelhos como uma romã de natal, me recebem.
E com eles recebestes a minha alma.
Meu corpo e eu estamos longe de ti e tão perto,
Como as colunas de Gibraltar, condenados a nunca mais se
encontrarem.
Mas, pelo amor de Deus, me deixe lembrar de ti neste
dois de junho
E em todos os outros vindouros, enquanto a
Morte não me agracia com a sua visita bem-vinda!
Nenhum comentário:
Postar um comentário