domingo, 30 de novembro de 2014

RIO PRETO D - A MÃO DO ANJO DA GUARDA

Publicado no Jornal D Hoje Interior publicação em 30/11/14




Podia ter sido pior, mas creio que todo mundo tem seu anjo da guarda. Ou seu guia; santo protetor, qualquer coisa que o valha. Essa história aconteceu em 1982, em setembro.

Fazia um calor infernal naqueles dias e o pátio da serraria estava lotado de toras para serrar e tábuas serradas. Enquanto alguns carregavam os caminhões outros funcionários labutavam na serra de fita. Como responsável pela produção e também pelo romaneio das cargas, eu vivia encarapitado nas pilhas de tábuas, de onde podia ver tudo e todos.

Numa daquelas manhãs, fui ajudar na serra de fita. O ajudante do serrador estava com dificuldades para mover uma enorme tora de cedro arana, com mais de 70 centímetros de rodo. Isto é, era um enorme tronco com um metro e quarenta de largura. Peguei a alavanca sobressalente para ajudá-lo e logo no primeiro movimento um parafuso da base se partiu e caí com o corpo emborcado, entre a serra e a parede. Coisa de meio metro. Caí com a cabeça entre os joelhos. E foi uma dificuldade para me erguerem do chão.

Talvez, por causa do sangue quente, não senti absolutamente nada no momento. Todavia, sabia que alguma coisa poderia ter acontecido com o meu corpo. Vinte minutos depois eu estava todo adormecido. Mãos e pés e pernas não se mexiam.

Todos entraram em desespero. Pensavam que eu tinha quebrado a coluna. Ou trincado. Achavam que eu nunca mais andaria. Com vinte e poucos anos, entrei em pânico, num choro convulsivo que cristão algum conseguia consolar.

O motorista da serraria foi quem deu o grito: vamos levá-lo para o hospital de Jacundá. Quarenta e quatro quilômetros de estrada ruim, cheia de buracos, costelas de vaca e poeira – ou atoleiros quando alagada. Colocaram-me na carroceria do nosso caminhão, um Ford azul, em cima de um colchão e tocaram para Jacundá.

Foram quatro dias de internação tomando Benzetacil. Graças a Deus nunca fui alérgico a nenhum antibiótico. Tomava a tal injeção de manhã e de noite, de cada lado das nádegas. Nunca senti nada mais dolorido; a dor perdurava por dias.

Entretanto, mais dolorido que a bendita injeção era o cenário da manhã. Na enfermaria masculina havia catorze camas. A minha era a última. Em quatro noites morreram pelo menos nove (que eu contei) pacientes com malária; saia um cadáver, entrava outro doente. Todos ali estavam atacados pela malária e as muriçocas sobrevoavam camas e pacientes diuturnamente, enquanto eu rezava e invocava todos os santos católicos para me livrarem das malditas muriçocas - eram na verdade uns pernilongos com trombas de elefante.

Na manhã do quinto dia apareceu no quarto um homem barbudo, magrelo e alto, xingando o médico aos berros, querendo saber quem havia autorizado aplicar Benzetacil em mim. Ele praticamente havia invadido o hospital, levando consigo quatro peões da serraria, dois deles armados. Tiraram-me do hospital na marra e levaram-me de volta para a serraria. Era um motorista de Guaraçaí que precisava carregar seu caminhão.

Quando chegamos, ele deitou-me no chão, sentou-se sobre mim e meteu os dedos na minha coluna. Urrei de dor. Confesso, urinei nas calças. Meia hora depois, eu estava de banho tomado e encarapitado num pilha de tábuas fazendo o romaneio da sua carga, como se nada tivesse acontecido. Nenhuma dor.

Ele havia sido massagista de times profissionais, como a Portuguesa. Se ele não tivesse sido tocado pelo meu anjo da guarda talvez eu estaria, até hoje, tomando Benzetacil no hospital de Jacundá, lá nos cafundós do Pará...

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