terça-feira, 13 de janeiro de 2015

RIO PRETO D - MAMPARRA OU DEPRESSÃO

Publicado no Jornal D HOJE em 14/01/15


Eu lembro de uma vez, quando era criança, que meu pai ficou dois ou três dias sem levantar da cama. Dizia que não tinha vontade de sair da cama; sem vontade de por a cara na rua. Seus irmãos, meus tios, disseram, uníssonos: é mamparra. Essa palavra ficou gravada na minha memória como uma velha tatuagem incômoda.

Dia desses, sentindo essa insatisfação generalizada, busquei socorro no Houaiss e lá encontrei a malfadada mamparra, na página 1827, espremida entre mampar e mamparreação. Mamparra é um sufixo feminino que surgiu nos meados de 1899, e entre suas significações estão preguiça traiçoeira, fraudulenta; velhacaria. Embromação. Subterfúgio. Fingir executar um trabalho.

Quantas pessoas devem ter morrido sob a pecha da vagabundice e de preguiçoso enquanto na verdade estava corroído e destroçado pela depressão. Dizem os entendidos que essa é a doença do século, a doença maldita da pós-modernidade, talvez tão virulenta e cruel quanto o diabetes, o câncer e as doenças cardíacas.

Eu nunca acreditei nesta doença; sempre achei que era mamparra, até o dia que encontrei um amigo devastado por essa coisa terrível. Pensei em meu pai e no esforço gigantesco que deve ter feito para se levantar daquela cama e enfrentar o serviço ao lado dos seus irmãos. Talvez tenha sido isso que o salvou das garras desta doença maléfica.

Rivotril. Dizem que este é o remédio. Quem toma isso fica feliz. Mas depois tem que voltar a tomar e tomar e tomar... A pílula da felicidade. Diz a revista Superinteressante que o Brasil é a “Nação Rivotril”. É o segundo tarja preta mais consumidor do país. Só perde para o Microvlar, o anticoncepcional distribuído gratuitamente pelo SUS.

Acho que a pior coisa que vem com a depressão é a vontade de morrer. De repente, a ideia da morte se torna sedutora. Não suicídio. Não é o desejo de se matar, mas um insano desejo de morrer. Todos podem ficar doentes, menos você.

Primeiro você perde a vontade de comer, de andar, de apreciar as coisas. Tudo se torna difícil e diáfano. Tagarelice incomoda. Conversar incomoda. Cumprimentar as pessoas nas ruas, abrir um sorriso, dizer um bom dia... então vem a vergonha de andar, a vergonha de ser gente.

Tudo o que você quer é fazer como fazem os velhos cães quando se adoentam: escolher um canto, se possível um cantinho aconchegante, e lá se deitar para esperar a morte chegar. Sozinho, mas não solitário. Sozinho com as lembranças dos seus muitos erros e dos poucos acertos; sozinho com suas lágrimas e arrepios; só, suas dores e você.

Mas como fazer isso neste mundo onde todos tem muita pressa mas insistem em te incomodar quanto você quer paz? Seus passos ficam mais lentos, sua cabeça se nega a acompanhar o fluxo das coisas. Tudo irrita. Qualquer barulho se torna infernal. Sorriso é vitupério.

Como distinguir mamparra de depressão?

Como dizer a uma pessoa derramada na cama que suas dores de alma são uma preguiça traiçoeira e fraudulenta? E essas lágrimas que perfidamente teimam em escorrer quando você menos espera?

Então você sonha com o Rivotril mas suas forças são tão débeis que você prefere ficar na cama como quem não tem nada para fazer, a não ser mamparrear.

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