domingo, 11 de janeiro de 2015

RIO PRETO D - DUAS MULHERES

Publicado no JORNAL DE HOJE em 11/01/15





Parado no semáforo, observo a senhorinha atravessando a avenida Bady Bassitt. Magérrima, a pele negra ressecada pelo sol, carente de creme de hidratação, e os cabelos, ainda estão negros nas pontas, mas brancos na raiz. Tento imaginar quantos anos ela tem. A perna direita, pegando a metade da canela até o tornozelo, está enfaixada; porém, ela usa sapatos limpos e bem lustrosos. Seu vestido, azul com estampa de pequenas flores brancas, está impecavelmente passado. Á tiracolo uma pequena e discreta bolsa. Quantos anos tem essa senhorinha?

De passos miúdos, prestando atenção no trânsito, ela cruza as pistas. Nos seus olhos, um receio compreensível. A crescente má educação no trânsito é um perigo para as pessoas a pé, em especial para os idosos. O motorista parece não saber (e acho que não sabem mesmo) que o trânsito de veículos nas ruas é uma concessão do pedestre. Eu demorei uma vida para descobrir isso. A preferência entre um pedestre e um automóvel, mesmo com o sinal aberto para o motorista, é sempre do pedestre.

Enquanto observo a senhorinha, pego o bolso da camisa um panfleto amarelo, que recebi na rua, em Porto Alegre, oferecendo serviços de “Cartas & Tarô”. Chamou-me a atenção o subtítulo “Não diga nada lhe direi tudo!”. A falta da vírgula (como observaria Geovana Soncin) salta aos olhos. É como aquela famosa frase “Jesus venceu vive e voltará”. Sem a vírgula, “vive” é sujeito. Portanto, surge a questão: que foi o “Vive” que Jesus venceu?

A frase da cartomante é intrigante. Num primeiro instante a falta de vírgula é uma boa saída. Se a cartomante errar, não poderá ser questionada. Ela argumentará que se esqueceu de colocar a vírgula diante da palavra “diga”. Instigantes são os serviços oferecidos. “Clareie seu caminho, procure quem realmente entende do assunto”. Trazer o amor que está afastado; melhorar seus negócios; combater a inveja e o mau olhado; curar depressão e dar solução para os seus problemas. E também promete “real proteção por intermédio de seus guias de luz”. Os serviços são oferecidos por Dona Anita e diz, textualmente, que os trabalhos só serão cobrados “após o resultado” e reforça: “ver para crer”.

Sem qualquer ilação ou raciocínio crítico, automaticamente fiz uma conexão mental entre a taróloga e cartomante Dona Anita e aquela senhorinha atravessando a avenida. Mais de mil quilômetros distanciam essas duas mulheres e tento, irresistivelmente, associa-las na minha mente, numa tarefa impossível. Uma ânsia brutal me dá um desejo enorme de conhece-las, de saber como foram e como é suas vidas. Onde nasceram, quem são seus pais, que educação tiveram, o que o destino lhes reservou...

Por um instante essas duas mulheres tiveram suas vidas cruzadas no meu pensamento, num insano desejo de conhecimento. E quem sabe, reconhecimento. Ouvir a voz, olhar seus olhos, sentir a textura de suas mãos nas minhas mãos, inebriar-me com suas histórias de vida. Quanta riqueza há no interior das pessoas que cruzamos todo momento nas ruas, nos bares, nas esquinas, aviões, ônibus... riqueza de vida, de experiências, de sobrevivência. Nem ouso usar aquela tal de resiliência (palavra que está na moda para substituir teimosia). Quanta teimosia em viver neste mundo vazio e decrépito!

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