segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O COMEDOR DE LETRAS

por Lelé Arantes

Dia desses uma amiga perguntou porque parei de escrever.

Ou, porque escrevo menos do que escrevia antes.

Inventei uma desculpa qualquer, algo como ter perdido a inspiração; estar cansado ou, pior ainda, não ter assunto. Ela ficou indignada. Como, um homem que viaja tanto, que conhece todos os estados brasileiros, todas as capitais, não tem assunto para escrever? Fiquei aporrinhado com a interpelação, mas admito que ela mexeu comigo.

Houve um tempo que escrever era uma necessidade quase fisiológica. Assim como ler. Até hoje tenho lembrança da alegria que tomou conta de mim quando, pela primeira vez, li uma história completa. Era uma fotonovela e o herói se chamava Jacques Douglas. Um espião. Uma estória de espionagem ambientada em Nairóbi. Esse nome, Nairóbi, ficou grudado na minha mente como visgo, por muito tempo. Eu queria conhecer Nairóbi. Cresci com a ideia de que um dia iria andar pelas ruas de Nairóbi. Um devaneio que se foi apagando no tempo, atropelado pelas peripécias da adolescência e as necessidades do sobreviver.

Ler, ler, ler... ler era tudo o que queria. Antes de escrever, nasceu a vontade de ler. Lia gibis, jornais, livros, recortes. Tudo que se podia ler, eu lia. Algumas palavras me atormentaram por longos anos. Eu as lia, mas não sabia como pronunciá-las. Algemas, por exemplo. Por causa de uma novela chamada Algemas de Ouro. Para mim, eram “alguemas”, mas tinha vergonha de pronunciar e errar. Cônjuge era um palavrão sem tamanho. Como podia existir uma palavra tão disgramada!

Aos poucos fui aprendendo a ler, a decifrar as palavras. Quando, anos mais tarde, li o conto “As Leopardas”, de Roberto do Valle, me senti como aquelas crianças da ficção caçando palavras junto com o pai; caçando as leopardas. As palavras difíceis eram as leopardas. Fiquei tão encantado com o conto que escrevi uma crônica na Folha de Rio Preto, dizendo que Roberto era o Joyce rio-pretense. É que naqueles dias eu havia devorado Dublinenses.

Pior era a minha fala.

Eu tinha uma enorme deficiência para pronunciar palavras com s, f, ch, x...

Então, ler foi uma forma de corrigir a deficiência. Ler em voz alta como aconselhou o Doutor Miguel, de Mirassol. Minha mãe me levou para uma consulta. Saiu lá de Cosmorama e foi até Mirassol, de ônibus, para o médico me olhar. Ele foi curto: “quando ele entrar na escola e aprender a ler, ele sara”. E foi isso que aconteceu, sem antes eu ganhar o apelido de Lelé. Coisa do Paulo Féboli, que escreveu Lele na minha testa, numa brincadeira dos “grandões” no terreirão da máquina de arroz do pai dele, o seo Hermínio.

A leitura me ajudou. Deixei de comer as letras. Café era caé. Feijão era eijão. Faca era aca. Futebol era utebol. Salsicha era impronunciável. Talvez algo como au-i-a.

De repente, um mundo novo se abriu e café era café. Pronto. Mas o apelido já tinha colado. De Toninho para Lelé. A aventura de comer letras teve seu fim, sem antes o Alcides do açougue correr atrás de mim, ameaçando me dar uma surra, porque cheguei no balcão e falei, na maior inocência: — ...eo Al...ides, meu pai mandou o ...enhor me dar um quilo de ponta de peito e meio quilo de a...ém moído!

Foi um tropel.
Legenda: Foto extraída 14/1/2019, às 20h12, do site http://acervo.plannetaeducacao.com.br/portal/impressao.asp?artigo=2672, do artigo “As multi faces da pronúncia”, de Rodolfo Mattiello. Leitura recomendada.

8 comentários: