Domingo de carnaval. Mas um carnaval. Não sei se isso é bom ou ruim, mas antigamente eu esperava essa data com espírito festivo. Ao contrário de Adoniram Barbosa, minha lembrança de carnaval não vem de nenhuma Vila Esperança, nenhuma Maria Rosa, nenhum primeiro amor.
O primeiro carnaval de que tenho lembrança aconteceu na máquina de arroz dos irmãos Ermínio e Valdomiro Féboli, na rua Rafael Sabadotto, em Cosmorama. Criança, tinha lá meus sete ou oito anos, talvez menos, lembro-me da agitação que tomou conta dos adolescentes, dos moços e moçoilas da vizinhança, da algazarra que fizemos na limpeza da máquina, com meu pai e meus tios afastando as pilhas de arroz para os cantos das paredes, de forma a sobrar espaço para a folia.
Eram os carnavais das marchinhas, uma espécie de corso sem carros, onde os foliões dançavam em blocos, casais e sozinhos. As moças se faziam mais lindas, mostravam um pouco mais do corpo enquanto os rapazes, com os hormônios explodindo, seguiam-nas ávidos e desejosos.
Depois, vieram outros carnavais no clube da cidade, ao som de boas bandas. Eram quatro dias de cansaço e suor, que nos deixavam extenuados na madrugada da quarta-feira de cinzas. Um clima de euforia e alegria reinava nos quatro dias porque depois seriam quarenta dias de resguardo. A quaresma era guardada de verdade. Os bailes eram proibidos nesse tempo que deveria ser de meditação. Quando chegava a Semana Santa o regime ficava ainda mais apertado. Durante a quaresma era proibido comer carne nas sextas-feiras. Na Semana Santa era proibido carne todos os dias e na Sexta-Feira Santa fazia-se um jejum, podendo comer peixe ou bacalhau à noite; nem podia assobiar ou cantar porque isso feria a imagem que tínhamos de Cristo crucificado. O final era passar pelo menos cinco minutos ajoelhado à frente do Senhor Morto, em estado de contrição, rezando Pai Nosso e Ave-Marias.
E ai de quem não guardasse aqueles mandamentos instituídos na família não sei por quem. Até porque não éramos muito de freqüentar igreja. Só vi meus pais na igreja para batizar e crismar os filhos. Dona Francisca, minha avó paterna, fazia parte do Apostolado do Coração de Jesus. Acho que é isso. Usava aquelas fitas vermelhas no pescoço e ajudava na cozinha da quermesse. Mas, meu pai e meus tios professavam outra a religião, eram devotos do deus Baco brasileiro: adictos da cachaça.
Num carnaval desses da vida eu conheci uma menina que se chamava Rita, que morava no Tucuruvi, em São Paulo. Era sobrinha do Toti, dos Stachissinis. O que me chamou a atenção nela foi o fato de ser desprovida dos trejeitos preconceituosos da maioria das moçoilas cosmoramenses. Noutro carnaval, conheci Márcia Rufatto. Outra paulistana. E essa me fez ver que ficar em Cosmorama era estar fadado a um destino pré-determinado, já rascunhado por algum deus desconhecido. Os carnavais são assim, mágicos e profanos.
Agora, faz tempo que perdi a graça do carnaval. É minha alma que está envelhecendo, se preparando para partir para outras plagas. Na medida em que envelheço vou perdendo esse encanto com a folia, me afastando para o campo da meditação, querendo um sossego que ainda é cedo para aspirar. Minha última lembrança do carnaval enevoa-se nas brumas do esquecimento. Creio ser 1984 ou 85, e me vejo trôpego, de pernas bambas, abraçado a Maria dos Anjos Duarte e ao cartorário Sidmar Viana, que me carregavam com certo esforço, subindo a pé a General Glicério, depois de uma longa noite de carnaval no Palestra Esporte Clube...
(À memória de Bagdá, Alberto Cecconi, Edson Palmeiri e Fernando Féboli)
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