Os meninos (quase moleques de rua
se os anos 60 fossem hoje), de pés descalços, calças curtas, camisa ou
camiseta, cabelos desgrenhados, chegavam se esgueirando, meio que andando de
lado, com uma enorme vergonha, para comprar na bica da máquina de
beneficiamento o arroz limpo. Quando a situação estava boa, com o pai
trabalhando, compravam arroz de segunda. Abriam o embornal ou o saco branco,
dependendo da quantidade a comprar, para que o dono da máquina ou o maquinista despejasse
o arroz. Arroz de segunda era diferente do arroz de primeira. No de primeira
não havia quebra, todos os arrozes eram branquinhos, certinhos, grãos inteiros.
O de segunda já aceitava arroz quebrado e alguns marinheiros, aqueles arrozes
avermelhados, alguns com casca. Era arroz que dava escolha.
O dono da máquina conhecia a vida
econômica de todos. Na hora de comprar o arroz ele podia medir a situação de
cada família. Tinha o controle do conhecimento sobre a vida alheia. Se o pai
estivesse desempregado e a mãe trabalhando, quem sabe lavando ou passando
roupas, lá vinha o moleque, caminhando de banda, de olhos baixos, pra comprar o
arroz três quartos. Era inferior ao arroz de segunda, mas era bem mais superior
que o meio arroz. Comprar meio arroz era chegar ao fundo do poço, uma
humilhação sem tamanho. Era porque o pai e a mãe estavam sem emprego.
Todavia, havia algo pior que comprar
meio arroz era comprar quirela para consumo humano. Era melhor e mais decente
não comprar nada. Comer quirela era um rebaixamento pior que a vida numa
pocilga. Quirela era comida de porcos. Era melhor não ter nada na mesa que
cozinhar quirela. Isso atrairia mais e mais pobreza.
Há uma lógica e uma ciência na
miséria. Comer dentro de casa para que o vizinho não veja o que você está comendo
faz parte da lógica da defesa contra a inveja e a cobiça. O que não é visto não
é cobiçado. Se você come no terreiro, alguém pode ver e invejar seu prato de
arroz branco fumegante, com feijão e o dourado do ovo estrelado (não é
estalado, é estrelado mesmo!). Pode ser que a força do olhar cobiçoso faça com
que teu prato caia no chão ou que a comida te faça mal no estômago. Os olhos da
fome são sempre baudelairianos, dotados de vida própria e de energia
inconsumível. Não há nada mais terrível que os olhos de fome de uma criança.
A pobreza exige criatividade.
Família pobre com muitas poucas para comer exige sabedoria e administração de
escassez absoluta. Muitas mães são economistas de nascença. Arrumar mistura
para o arroz, seja ele de segunda ou meio arroz não é tarefa para dondocas.
Torresmo de úbere, caldo de mocotó, cozido de bofe de vaca, fritada de tripas,
bucho com lingüiça ‘cabo de reio’, folhas de caruru fritas, quibebe de costela
e mandioca, farofa de feijão guandu, mamão verde refogado, ponta de peito
assada no fogão a lenha, feijão com pele de porco, sopa de pés de galinha,
pirão de cabeça de peixe, sardinha salgada, jabá de terceira... tudo que pode
ser mastigado com custo barato ou de graça serve.
Hoje não tem mais arroz quebrado.
Os arrozes chegam ensacados e os preços variam para agradar a todos os bolsos.
Contrariando a regra do passado de que “arroz era tudo igual” atualmente o
arroz é produto nobre e com nomes e cores diferentes: arbóreo, basmati, bomba, jasmim,
selvagem, carnaroli, vialone nano... uns tem cores, são vermelho, verde, azul,
preto, amarelo. Alguns, como basmati, tem até perfume. Outros são aromáticos.
Na verdade, nada disso importa
quando se está com muita fome diante de um cheiroso prato de arroz, ainda que
só ele esteja sobre a mesa!
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