sábado, 22 de fevereiro de 2014

A VERDADE QUE DÓI E INCOMODA



Está no ar uma fúria latente, como uma bolha pronta para arrebentar. É a classe média brasileira e parte da classe que se diz rica (mas que de rica não tem nada; apenas menos de 1% da nossa população é rica de verdade) irada e nervosa, indignada e pasmada, que vê no governo Lula/Dilma a culpa por todos os males que assolam este país. Eles tem culpa sim, mas não são culpados sozinhos. Essa coisa vem de longe, como diria Leonel Brizola.

Lembro-me que recentemente, numa reunião em que eu estive no Rotary, do padre Nélio de Jaci, mostrando no powerpoint a pobreza absoluta do Haiti, onde ele tem uma missão de caridade. Muita gente foi às lágrimas com as imagens, mas essas mesmas pessoas em lágrimas pelos pobres do Haiti são as mesmas que combatem com ferocidade leonina os programas sociais como o Bolsa Família no Brasil.
Lula, Dilma e o PT traíram a classe média. Essa verdade é dolorosa. Não sei o que a classe média brasileira esperava de um governo do PT. Mas os integrantes dessa classe se sentem traídos.

Por outro lado, Lula muito mais que Dilma, entregou à maioria dos pobres o que ele prometeu: pelo menos uma refeição por dia. Ele falava em três (ficou devendo duas). E fez isso via Bolsa Família. Para a classe média, que perdeu no caminho a faxineira e a empregada doméstica que cobravam barato por um dia de trabalho sem férias, sem 13º e sem aposentadoria, esse tal de Bolsa Família é um programa “eleitoreiro” (o correto é eleiçoeiro) destinado a manter o PT eternamente no poder. Ela tem certa razão e vou explicar porque; mas sua razão é distorcida da realidade mundial.

A classe média brasileira e “a rica que se acha rica” gosta de comparar o Brasil ao primeiro mundo. Gosta de passear no primeiro mundo e voltar contando as maravilhas do povo de lá. Não tem sujeira nas ruas, o povo é educado, o povo é limpo e bonito, até mendigo lá é bem vestido. Todo mundo tem casa pra morar, tem saúde e educação gratuita, as melhores universidades... é quase tudo verdade.

A classe média esquece de uma coisinha: que nós, latinos da América do Sul, fomos colonizados pelo que havia de pior do primeiro mundo. Para aqui vieram soldados rasos e incompetentes, putas, velhacos, adivinhadores e curandeiros, degredados e degradados, criminosos e assassinos condenados à morte... depois vieram escravos trazidos à força, caçados a laço e enfiados contra sua vontade em navios apodrecidos de doença e de ratos e baratas e pulgas e percevejos, com águas pútridas e comidas fétidas. Quem sobrevivia chegava aos portos brasileiros para ser vendido como animais pestilentos.
Quando a escravidão terminou (o Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir essa prática inumana) vieram os imigrantes europeus: italianos e espanhóis fugindo da fome, das guerras, das doenças e principalmente da falta de perspectivas de vida. E japoneses e portugueses, idem. A maioria era analfabeta e miserável que encontrou no Brasil uma terra promissora que, com sua vontade de trabalhar e de vencer, conseguiu aqui formar suas famílias e mudar o rumo de suas vidas para melhor. Ao absorver o excedente demográfico desses países, Brasil, Argentina e Estados Unidos contribuíram para que Itália, Espanha, Portugal e Japão pudessem dar a volta por cima. Hoje, os descendentes desses imigrantes são vistos e recebidos nos países de origem como cidadãos de segunda categoria, e muitos são  vistos e humilhados como interesseiros em busca de heranças.

Agora, os países europeus são as vitrines para os brasileiros (descendentes ou não dos imigrantes famintos) como modelo de civilização. Ótimo. A corrupção e o crime na Itália dão de 10 nos corruptos e criminosos brasileiros. Mas vá lá... deixa prá lá. Nós temos aqui nosso Berlusconis da vida e alguns que eles exportam pra gente como os Cacciolas, Gross e Pizzolatos...

Esquecem os arautos admiradores do primeiro mundo que lá o Bolsa Família existe desde o fim da Segunda Guerra. Claro que com outro nome. Afinal, Keynes jamais imaginaria uma distribuição de renda forçada pela troca de crianças na escola e formação profissionalizante para adulto (aqui o programa peca, pois são poucos os lugares onde se obriga os dependentes do Bolsa Família a fazer cursos profissionalizantes). Implantados lá pela socialdemocracia, o nosso “estado de bem estar social” foi implantado no Brasil com a ascensão do PSDB ao poder, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Só com 50 anos de atraso. O que é o welfare states senão um grande bolsa família europeu!
Com este programa, os países lá conseguiram reduzir seu nível de pobreza, construindo uma base sólida no campo social, cultural e educacional. A França reduziu sua pobreza absoluta de 36% para 9%; a Itália, de 31% para 14% (ah, ainda tem pobreza absoluta na Itália? Tem sim, mas turista não vê); Bélgica e Dinamarca de 26% para 6%; Suécia, de 24% para 6%; Estados Unidos, de 21% para 11% e Canadá, de 22% para 6,5%; até a Suíça e Noruega valeram-se do welfare states para serem o que são hoje: a primeira reduziu sua pobreza de 12,5% para 3,8% e a segunda de 9,2% para 1,7%.

O que a classe média faz de conta que não vê é que este dinheiro, ou seja, a transferência de renda feita por meio do Bolsa Família, não fica com os pobres e miseráveis que o recebem. Mal pegam este dinheiro ele é gasto imediatamente. Seja comprando comida, roupas ou cachaça. E quem é que vende: a própria classe média, que é a detentora do poder de compra no país. É a classe média que domina o comércio (a burguesia, como diriam os teóricos do comunismo e do socialismo). Por mim, é melhor ver este dinheiro na conta bancária da classe média do que na salvação de bancos falidos e de picaretas internacionais socorridos pelo governo.

Com este dinheiro, a classe média compra e vende, movimenta o comércio e a indústria, gera empregos e produz riquezas. É uma bola de neve positiva. O Brasil gastou em 2013 R$ 24 bilhões com o Bolsa Família para 50 milhões de pessoas, dinheiro este que caiu nas mãos da classe média brasileira. Por sua vez, a mesma classe média, composta pela maioria dos sonegadores de impostos do país, sonegou no mesmo período R$ 400 bilhões, ou seja, quase 20 vezes maior que o valor do Bolsa Família.

A discrepância é grande. Alguém embolsou R$ 400 bilhões dos impostos e com certeza está nos restaurantes caros reclamando das migalhas que caíram da mesa para os pobres brasileiros assistidos pelo Bolsa Família.

A pergunta é: se 50 milhões de pessoas dividiram R$ 24 bilhões do Bolsa Família, quantas pessoas embolsaram os R$ 400 bilhões de impostos sonegados? Não esqueça que o trabalhador tem o Imposto de Renda Retido na Fonte.

A verdade dói e incomoda


(Tem continuação.)

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