quinta-feira, 20 de novembro de 2014

RIO PRETO D - A NOITE MAIS LONGA

Publicado no Jornal D Hoje Interior



Passamos meses aguando aqueles belos e jovens cafeeiros. Todas as noites, menos as chuvosas, percorríamos rua por rua levando água às raízes sedentas que penetravam fundo o solo ruim do cerrado, terra desnutrida, não apropriada àquele tipo de plantação.

Para tornar a terra fértil, a roça recebeu calcário, estrume de gado e adubo químico. A terra esturricada foi umedecida à força de regadores para receber as cavadeiras. Braços fortes e morenos erguiam e desciam as cavadeiras em forma de V para puxar a terra e fazer as covas. Serviço duro, pesado e cansativo. Quando o dia terminava, os cavadores não sentiam mais os braços e os plantadores estavam no limite da dor nas costas.

Outra batalha foi travada com as formigas. Enormes batalhões de saúva percorriam dia e noite o cafezal, promovendo um estrago sem tamanho. Centenas de litros de veneno despejados em cada buraco de formiga. Por meses a fio as formigas foram sucessivamente atacadas e milhares de pés de café foram replantados uma, duas, três, quatro vezes, até que as formigas foram rareando.

Naquele ano, Rod Stewart fez sucesso com Sailing. A música é um ponto de referência. Foi numa noite dessas, de aguar café, que uma cobra deu o bote na minha perna. Errou quando mudei o passo e ela ficou com o dente enroscado no pedaço de pneu que servia de sola da botina. Muita sorte minha, porque era daquelas que se não matam aleijam. Urutu cruzeiro, disse um. Jararaca, disse outro. Até que gritei, paralisado de horror: “e quem é que vai matar essa coisa!?”. Desceram o cacete na cobra, acertando de cambulhada meu pé, tornozelo, canela... A cobra se contorcendo de um lado e eu pulando de dor do outro. Depois rimos de tudo aquilo.

Tinha cobra de montão por causa do cerrado que cercava a plantação. Um dia, caçando casas de formiga, encontrei um buraco de uns dois metros de profundidade cheio de cobras. Cobras de todo tipo e cor. Disseram que foi um benzedor que as levou para ali, por meio de encantamento de reza brava. Coisa de São Cipriano! E ali elas estavam havia anos e deveriam permanecer até seu definhamento total.

Por quase três anos trabalhei naquele cafezal. Até sábado, domingo e feriado. Vezes havia em que o dia emendava com a noite e em várias ocasiões dormi ali mesmo, com o corpo estirado sobre a pilha de sacos de plástico de adubo. As perspectivas futuras eram zero e aquele trabalho era uma dádiva sagrada.

Um dia em que o sol não surgiu na linha do horizonte. O céu tornou-se plúmbeo e um vento gelado varreu o cafezal o tempo todo. À tarde, uma noite de breu caiu sobre nós e o frio foi aumentando no correr dos minutos. Cobertas, blusas, calças, meias, nada vencia o frio que entrava pelos poros. Fizemos uma fogueira e um litro de pinga andou de mão em mão para esquentar o peito, por dentro.

O vento zunia e de repente alguém disse: “está geando!” E outra pessoa rebateu: “vira essa boca pra lá”. Mas sabíamos que era a geada e todo o mal que ela poderia causar. Em silêncio aguardamos o dia amanhecer. A noite mais longa de nossas vidas e quando o dia clareou ninguém conseguia segurar as lágrimas e nem os soluços.

A geada não poupara um pé sequer. O que ontem era uma enorme mancha verde agora era uma desolação de dar dó. Todo o cafezal estava enegrecido, queimado, murcho, sem vida. E nesse dia eu vi um homem fincar os joelhos na terra, erguer seus braços e olhos para o céu e questionar, com o rosto banhado em lágrimas, o seu Criador. E seus gritos ecoam até hoje nos meus ouvidos quando revivo na memória aquela cena de impotência e revolta. Não sei algum dia ele obteve a resposta. Penso que Deus, às vezes, para nos poupar, faz de conta que não nos ouve.

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