domingo, 23 de novembro de 2014

RIO PRETO D - LEITURA DE DOMINGO

Publicado no Jornal D Hoje Interior em 23/11/2014





Era um despautério aquilo, mas a gente adorava quando o dia amanhecia prometendo chuva. Se possível só prometendo. Que chovesse, mas chovesse pouco. Nada de alagar o campo de futebol. Que chovesse o suficiente para acabar com o dia, mas permitir o jogo de bola na parte da tarde. Se possível o dia todo. 



Com a chuva não tinha trabalho, o dia virava feriado e nós podíamos desfrutar aquela vadiagem momentânea. Ficar em casa, descansar, jogar futebol, fugir do trabalho pesado da roça.


Onde estava o despautério então? A questão é que, como diarista (ou jornalista como se dizia no passado quando se trabalhava por jornada), a gente ganhava só quando trabalhava. Portanto, esse feriado forçado era na verdade um dia perdido. O fato de chover tirava das nossas costas o sentido da vagabundagem e a culpa pela grana mais minguada da semana. Ao contrário dos assalariados, daqueles que ganham seu salário mensal, nós, bóias-frias, não podíamos nos dar ao luxo de perder o dia de trabalho. Nem doente a gente podia ficar.

Um bando de marmanjos correndo atrás de bola. Qualquer quintal, um pedaço de pasto ou uma rua livre. Qualquer espaço que permitisse três dribles e lá estava um bando de moleques chutando bola em direção ao gol feito de pedra, de tijolo, de sapato, de qualquer coisa que pudesse lembrar uma trave e onde passasse uma bola. Passou dentro, é gol. Era assim, deve continuar assim, nas peladas de rua.

Ser bóia-fria não era fácil. Nem deve ser fácil hoje, mas me parece que pelo menos a comida agora é quente. Não se anda mais de pau-de-arara – aquelas carrocerias improvisadas com tábuas de um lado a outro da carroceria. Sol e chuva nas costas. E frio quando fazia frio.

Aliás, e como fazia frio naquela época. Chegava maio e junho e lá vinha o frio. Era sagrado. Tão sagrado como aquela propaganda das Casas Pernambucanas na Rádio Clube de Votuporanga em que o frio batia na porta e a moça dizia cantando: “eu não deixo você entrar...”. Memória é uma sacanagem da mente.

Se no calor a comida já era fria... no frio era um pedaço de gelo. Comer de caldeirão, com colher. Arroz, feijão, tomate e bife. Em tese era isso. A verdade era dolorida: o arroz eram 90% do caldeirão, feijão 7%, tomate 2,5% e bife 0,5%. Matematicamente falando. Tem gente que gosta de estatística. Essa é a estatística do caldeirão do bóia-fria dos anos de 1970. Agora, “comidamente” falando o tomate era uma massa avermelhada que perdia a textura por causa do bafo do calor da comida e o bife era o que chamávamos, até mesmo alegremente, de “sola de sapato”. Algo fino, frio e escuro cujo gosto lembrava carne bovina.

Eu devia ter me tornado vegetariano naquela época. Mas isso não era moda ainda. Vegano menos ainda. O veganismo é o libertarismo ao contrário, mas gosto disso. Defendo que se podemos comer os animais é natural que eles também possam nos comer. Por isso sou contra os crematórios. Eles impedem que os nossos vermes internos nos comam depois que morremos.

Pensando bem, tudo é um bom despautério para uma leitura de domingo. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário