domingo, 14 de dezembro de 2014

RIO PRETO D - O PÃO E O LIVRO

Publicado no Jornal D Hoje de 14/12/2014




O rapaz virou a página do livro, absorto na leitura difícil e com os olhos no relógio, esperando a hora de enfornar os pães que cresciam nos tabuleiros. Tinha tempo de sobra naquelas noites cosmoramenses. Ele pensava na ciência dos pães, na arte de fazer pães. A panificação é uma ciência, decretou Se o clima estava quente o pão crescia mais rápido, se estava frio crescia mais devagar. Lembrou da noite que caiu geada e que os tabuleiros foram empilhados bem pertinho do forno para pegar o calor das paredes. O pão demorou quatro vezes mais para chegar ao ponto de ser enfornado. Tinha a questão do ar. Se a massa tomasse vento o pão sairia cascudo, se tivesse açúcar a mais a casca dourava mais rápido e o pão ficava cru por dentro, se colocasse mais sal que o necessário a casca ficaria muito branca e seca. Se os pães fossem colocados muito próximos uns dos outros ficariam com “barriga branca”, com as laterais cruas. Era muita ciência!

Ele gostava daquele serviço. Trabalho limpo e noturno. Dormia pouco e tinha boa parte do dia para se dedicar aos seus livros. Lia também à noite nas folgas próprias da manufatura dos pães. Lia e ouvia rádio. Gostava de ouvir as rádios com músicas e notícias. Vivia fuçando nos botões para encontrar rádios diferentes. Atalaia, Mundial, América, Independência, Globo, Tupi, BBC de Londres, Voz da América, rádio de Moscou... Cada uma com sua programação diferente, com coisas que não se ouvia na sua pequena Cosmorama. 

Dobrou mais uma página e entrou na Revolução Industrial e o século 20. Debulhou com os olhos as letras, as linhas, os parágrafos de Maurice Dobb, tentando compreender tudo aquilo. Informações, conhecimentos, citações, um mundo acadêmico que corria célere sob seus olhos famintos. Conheceu um pouco de Arnold Toynbee. Gostou do nome. Arnold, falando sobre a terra e o crescimento demográfico. Perguntou-se do que valia tudo aquilo para quem fazia pão e até poucos dias antes capinava o chão, passava a ferro as touceiras de arroz, derriçava e rastelava e abanava café entupindo os pulmões com a areia da peneira. Pra quê ler Dobb se não entendia patavina daquilo? 

Trocou Dobb antes de chegar à 350ª página. Queria algo mais próximo de si. Escolheu Steinbeck: “As Vinhas da Ira”. Um romance de trabalhadores rurais do Oklahoma nas grandes roças de frutas da Califórnia, de pessoas sofridas em busca de esperança. Viu-se espelhado no “okie” Tom Joad, a personagem principal. Sentiu o cheiro do pêssego sendo colhido numa manhã primaveril da Califórnia. Steinbeck escreveu: “É bela a primavera na Califórnia. Nos vales, as flores das árvores frutíferas parecem águas perfumadas, brancas e cor-de-rosa, num mar pouco profundo. (...) As colinas cheias e esverdeadas são redondas e macias como seios.” E então ele quis conhecer a Califórnia. Apenas a Califórnia. E sonhou com ela, com seus pêssegos e suas maçãs.

Quando terminou de ler Steinbeck sabia que algo dentro de si havia se quebrado. De início sentiu medo de seus novos pensamentos e guardou-os para si, deixou que eles germinassem quietinhos na autoclave onde as ideologias são sonhadas e engendradas. Depois daquele livro ele sabia que seu mundo estava profanado e não seria mais o mesmo. Nem ele, nem as coisas à sua volta. E então retomou Dobb para apreendê-lo com outros olhos. Havia trocado o paradigma e fazer pães tornou-se um ofício saboroso por entender que o pão é como um livro: alimentos para serem degustados com carinho, sentindo o sabor, a quentura, a maciez, a textura porque um alimenta o corpo e o outro a alma.

Nenhum comentário:

Postar um comentário