quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

RIO PRETO D - NAS MARGENS DO CUIABA

Publicado no Jornal D Hoje Interior publicação em 03/12/14




Em São Gonçalo parece que o tempo parou. Não sei em que época, porque o frezzer vertical está bem ali, repleto de rótulos amarelos da Skol. Do outro lado da rua, desce calmamente o rio Cuiabá. O dono do restaurante diz que Cuiabá nasceu ali, apontando o barranco onde teriam apeado das canoas os bandeirantes para fundar a cidade trezentos anos atrás. É difícil imaginar os bandeirantes escalando aquele barranco com suas tralhas.


Eles vieram de São Paulo, via Porto Feliz e Sorocaba, navegando o Tietê, o Paraná, o Sucuriú, vencendo cachoeiras e corredeiras, como o Salto do Avanhandava, mosquitos da malária e febre amarela, tifos e outras pestilências, mas principalmente escapando das flechadas certeiras dos índios bravios que dominavam os sertões solitários do Brasil.

Era uma epopéia fazer essa viagem três séculos atrás. As bandeiras e monções eram verdadeiras expedições comerciais, assim como as grandes navegações, dotadas de planejamento e logística, onde tudo era calculado, sopesado, organizado. Até o fator humano era levado em conta.

Nunca, jamais, uma caravana saiu de São Paulo e chegou inteira onde tinha que chegar. As mortes eram frequentes. Ataques de índios, febres e doenças, picadas de serpentes e aranhas, acidentes, afogamentos, brigas entre os próprios participantes, animais selvagens... alguns desertavam, outros desistiam. Mas quem chegava ao destino enricava. Muitos poucos se arriscavam a fazer a viagem de volta e isso promovia o surgimento de pequenas vilas enfiadas nas matarias virgens do Brasil, sempre perto de um curso d'água.

Ouro e índios eram uma combinação que geravam mortes, violência e riqueza e na esteira o sofrimento humano inenarrável, nunca contato porque na história as coisas individuais perdem o significado. Primeiro foi o paulista Manoel Campos Bicudo, depois o sorocabano Pascoal Moreira Cabral que teve a iluminação de registrar uma ata de fundação para Cuiabá, em 8 de abril de 1719, após levar uma surra dos índios coxiponés. Prear índio não era empresa das mais fáceis. Eles também sabiam reagir e matar.

Não é difícil imaginar aquela turba mal cheirosa, que tomava banho de ano em ano, devastando a floresta em busca de índios para escravizar. Nem é preciso muito raciocínio para imaginar o que faziam com as índias quando as prendiam, após meses e meses de caminhada florestas adentro.

O primeiro nome de Cuiabá me dá a certeza de que algum ancestral do capitão Porfírio Pimentel esteve engajado na comitiva de Pascoal Moreira Cabral: Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Pimentel fundou duas cidades, Monte Alto e Monte Aprazível e das duas tiveram em seus nomes primitivos o Senhor Bom Jesus.

Do outro lado da margem, sentado sob frondosa sombra, um homem pesca de vara. Mais acima, onde o rio faz uma curva, pelo menos duas dezenas de pequenas canoas estão na água. Ainda se pega muito curimba no Cuiabá. "Proliferam como ratos d'água", diz um cuibano de São Gonçalo. Ele lamenta que o rio está assoreando e que os navios não sobem mais para o porto.

O sol é inclemente e a claridade faz o dia ficar mais colorido. Uma sonolência pós-almoço faz o corpo entrar em letargia. Sonho com o redário da casa de Joseph e Zezé Zeiss, lá em Formosa. Uma rede é tudo de bom depois de saboreado o lauto almoço de pacu, arroz branco, vinagrete, pirão de peixe e farofa de banana da terra. Não é preciso coisa melhor. Palitando um rib of pacu fish foi fácil filosofar as bandeiras, acompanhado dos cuiabanos Lilo Pinheiro e Chico Leblon.

(São Gonçalo, Cuiabá, maio de 2011)



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