sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

RIO PRETO D - O RISO DA BESTA

Publicado no Jornal D Hoje em 05/12/14





"A terra estremece com três coisas e uma quarta que não a pode suportar: com o escravo que chega a reinar; com o insensato que chega à abundância; com a mulher odiosa, que um homem desposou, e com a escrava que ficou a herdeira de sua senhora.

Isso foi escrito por Salomão, filho de Davi, rei de Israel. Faz parte de uma coleção de máximas com mais de dois milênios e está nos livros sagrados classificados como sapienciais: o Livro dos Provérbios. Vem de uma época em que escravos não tinham cor, nome nem pátria. De um tempo em que pobre nascia e morreria pobre quantas vezes tivesse a infelicidade de nascer. As castas estavam postas e como tais permaneciam por gerações seguidas.

Sacerdotes geravam sacerdotes, reis davam príncipes e novos reis. E ai de quem os afrontasse. Um que os afrontou, nascido em Nazaré, foi pregado numa cruz de madeira com cravos nos pulsos e nos pés, coroa de espinhos fincada na cabeça após receber cem chibatadas de tranças de couro com pequenas lâminas e bolas de aço.

Os que mandam são implacáveis quando se sentem ameaçados. Os tempos correram e as coisas não parecem ter mudado muito. O homem se refinou na arte da aniquilação. Antes da crucificação romana, os homens empalavam seus adversários vivos, espetando-os pelo ânus numa madeira pontiaguda que o penetrava até altura do estômago. O empalado passava dias morrendo lentamente, numa dor lancinante, enquanto os corvos, urubus e moscas fartavam-se de seu sangue, pele e olhos.

Outros bárbaros tinham o hábito de ostentar, em filas quilométricas, as cabeças de seus inimigos na ponta de paus na entrada ou saída de cidades conquistadas, enquanto os corpos eram jogados aos porcos, cachorros e outros bichos carnívoros.

Depois, os homens aprenderam a amar o próximo. Desceram os inimigos das estacas e das cruzes para colocá-los em buracos, só com a cabeça de fora, em terrenos dominados por formigas e cobras e animais atraídos pelo gosto e cheiro de sangue. Outros povos, mais piedosos, descobriram outra utilidade para as cordas: dependurar humanos em suas pontas. Depois do patíbulo, essa peça seiscentista, um médico francês, o Dr. Guillotin, inventou algo de fazer inveja aos ingleses: a guilhotina, um mecanismo mais eficiente que o machado sem corte que os britânicos usavam para cortar o pescoço dos seus condenados. Era também era menos doloroso que o método medieval dos católicos que matavam seus desafetos na fogueira, fazendo churrasquinho de gente em praça pública.

Mais tarde, Hitler colocou em prática a câmara de gás. Colocava lá dezenas de homens, mulheres e crianças e abria a torneirinha. Enquanto a asfixia os matava, os descendentes dos guerreiros da temível Germânia saqueavam malas e roupas das vítimas. Na outra ponta, a bomba atômica foi inventada para vaporizar os seres vivos às centenas de milhares.

Mas me dizem os contemporâneos que o homem de hoje é caridoso, tem a alma carregada de pia benevolência. Aqui, hoje, mata-se de outras formas, sem estacas e cruzes, sem fogueiras e gases. Matam-se os homens destruindo sua imagem, solapando sua autoestima, arranhando seu pundonor, queimando quase imperceptivelmente sua biografia.

Primeiro a condenação, depois o julgamento.

Se condenado, o cidadão já foi tantas vezes morto que nem sente a condenação; se for inocentado, suas mortes já foram tantas que nem consegue mais juntá-las para um sopro de vida.

E assim caminhamos nós, enquanto os atingidos não têm como se defender porque estamos, a cada dia, mais acovardados diante das injustiças e do riso medonho das bestas-feras.

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