quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

RIO PRETO D - O NATAL EM ÉPOCAS DIFÍCEIS

Publicado no Jornal D Hoje em 25/12/14





Aqueles foram anos difíceis.

O governo militar, execrado pelo meu pai até a décima-primeira geração dos militares golpistas, havia congelado os salários. Ele detestava Mário Henrique Simonsen e Delfim Neto. Tinha ojeriza só de ouvir falar em Costa e Silva. Mas quem era ele para discutir estes assuntos? Era apenas um pau-d’água a mais na cidade, que vivia carregando e descarregando caminhões de arroz, café e milho. Ele nunca gostou de trabalhar na roça. Preferia a cidade. Para cada caminhão carregado descia uma talagada de pinga. Às vezes duas ou três bem caprichadas. Era para matar o bicho. Estou velho e não sei, até hoje, que bicho ele matava engolindo doses e mais doses de caninha.

Meu pai coube perfeitamente na máxima que inventaram aqui na região para classificar os bebuns: “a cegonha trouxe, a arara leva”. Arara é o nome da aguardente de cana fabricada pela família Mattos, em Tanabi. Meu pai era um voraz consumidor desta água que passarinho não bebe e abotoou o paletó em janeiro de 1974, consumido por uma anemia aguda e cirrose hepática, com o fígado estuporado de cachaça. Deixou uma escadinha de seis filhos de um ano e meio a quatorze anos.

Naqueles tempos difíceis o Natal era uma época promissora.

As pessoas eram solidárias, davam cestas de comida. Era tudo o que precisávamos: o advento. Claro que só fiquei conhecendo o significado da palavra advento muitos anos mais tarde, quando me interessei pelas coisas da religião. Com a chegada do Natal, amanhecíamos na fila do Salão Paroquial para receber uma sacola carregadinha de coisas de comer. Macarrão, fubá, arroz, feijão, farinha, bolachas, balas, goiabada. Minha mãe ficava na fila do Centro Espírita. Minha irmã, Cristina, e eu, ficávamos no Salão. Era uma sacola pesada pra gente carregar. Todavia, era garantia de boa comida por pelo menos uma semana. Mesa farta.

Fartura era uma palavra milagrosa. Sempre gostei dessa palavra. Fartura me soa bem aos ouvidos, faz meu coração bater forte e me anima a levantar todos os dias de manhã. Como diria a personagem do livro “E o Vento Levou...”, Scarlett O’Hara: “fome nunca mais”. O Natal era esperado com a sanha viril de um noivo virgem (coisas de antanho, como diria o professor Manoel Antunes).

Eu sempre preferi a passagem do ano novo, quando então, logo que o sol surgia, surgíamos também nós, aquele bando de crianças alvoroçadas, de embornal a tiracolo, em busca de boas festas. Íamos de casa em casa, tal como abelhas em busca de pólen de flor em flor, batendo palmas e pedindo boas festas. Do Polegati e da casa do seo Otavio até a casa do Magri, pai do Baianinho e do Tolo; e na casa do Luiz Tonin. Era assim, percorríamos a cidade inteira. Nenhuma rua, nenhuma porta de Cosmorama ficava alheia aos nossos pedidos e nossos olhos pidões. Até na casa do José Justo a gente batia. E ganhava. E diziam que ele era muquirana...

Bons tempos aqueles, mesmo em tempos tão difíceis.

O seo Otavio, por exemplo, fazia uma geleia de mocotó que era dos deuses. Como é que uma pata de boi pode dar um doce tão gostoso! Nunca mais, em toda a minha vida, saboreei uma geleia de mocotó como aquela. O Polegati, por sua vez, era dono do último armazém na saída para o Scriboni, o Matadouro e Américo de Campos. Depois dele, era o estradão de terra. Todo ano, em junho, creio que no dia 24, o Polegati fazia uma festa junina de tirar o fôlego. Uma enorme fogueira, terço cantado e muita guloseima. Chocolate quente, quentão, anisetes, paçocas, roscas e pães doces... era uma fartura tremenda. Esperávamos a festa do Polegati com a mesma impaciência com a qual esperávamos a festa junina do Belisário Borges. Outra festa farturenta.

Era assim que viviam os pobres naqueles anos difíceis.

Festas em junho e Natal e Ano Novo. De semestre em semestre a gente tirava a forra. Deve ser por isso que os antigos inventaram os solstícios, para que o povo soubesse qual era a época de comer.

O Natal me lembra isso: a solidariedade e fartura.



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