sábado, 10 de janeiro de 2015

RIO PRETO D - OLHOS DA FOME

Publicado no Jornal D HOJE em 10/01/15





O homem sem dentes sorri. Seu sorriso benevolente e alegre reflete nos olhos cansados. Ele tem um rádio de pilha, desses pretinhos antigos, e o ouve atentamente. É do rádio que vem aquela felicidade toda. Passo e olho seu rosto sulcado de rugas. Seu olhar me acompanha. Além de alegre o olhar é calmo. Do rádio sai o som de uma melodia antiga. Identifico como um samba e abro os escaninhos da memória em busca do som. Eu conheço a música. Alguns segundo e lá está a memória apontando Agepê.

Há muito tempo eu não ouvia Agepê. Tinha até esquecido a sua existência. O homem ouve rádio e come um lanche, sentado na guia da sarjeta, com o carrinho de mão descansando ao seu lado. Ele é o cavalo e o cocheiro ao mesmo tempo. O carrinho, cercado por uma tela de arame, está cheio de papelão, papéis, garrafas de plástico e latinhas amassadas. Ele é um desses homens e mulheres e crianças que limpam as ruas atrás daquilo que os outros jogam fora. Eles chegam antes dos lixeiros, fuçam no lixo, abrem sacos, sacolas, vasculham latas e lixeiras em busca de restos. Eles precisam correr para catar o que tiver de melhor porque atrás vem outros que também precisam chegar antes dos lixeiros e assim sucessivamente até que o caminhão chega para pegar o que restou do lixo.

Suas mãos sujas de lixo seguram o pão que ele come pantagruelicamente. Mas mastiga devagar, sorvendo cada naco. Invejo-o nesse raro momento. Eu mastigo tudo apressadamente, sem sentir o sabor das coisas. Mas ele não. Vai mastigando devagarzinho seu pão com alguma coisa dentro, como quem se refestela num banquete.

A luz dos luminosos e dos faróis dos carros arranca faíscas dos seus olhos. A Andaló fervilha de jovens que saltitam no fervor dos feromônios. Algo, não sei porque, me lembrou uma velha discussão em torno da morte. Afinal, de que vale tudo isso? Por que tanta correria? Para que nos esfalfamos tanto sob o sol? Para onde vai todo o dinheiro que todo mundo ganha trabalhando? Em que ponto do universo alguém está movendo todas as cordinhas desse formigueiro espacial?

Aquele homem ali é feliz. É como aquele pernambucano que meu pai ajustou uma vez para ajudá-lo numa colheita de arroz. Acho que foi em 1969. Numa noite, na hora da janta, o homem segurou uma coxa de frango, feito ao molho pardo, olhou para o meu pai e disse, placidamente: “olha só, seo Olímpio, eu dou mais valor nesse pedaço de ‘carrrrne’ que em Deus”. Foi um choque à mesa. Aquele homem estava sendo sincero, tinha os olhos encovados pela fome e um corpo tão magro que parecia não agüentar o primeiro vendaval. Era um trabalhador incansável a usar suas últimas energias calóricas para ganhar o pão do dia e guardar dinheiro para mandar de volta ao Pernambuco, onde mulher e filhos, igualmente famélicos, o aguardavam.

Eram dois homens em dois tempos diferentes e um terceiro que tinha o privilégio de ser expectador. Nos dois casos, algo ficou gravado num canto qualquer da memória. Creio que foram os olhos, aquele brilho esfogueado dos olhos que faz o homem romper sua condição pré-freudiana de pasto de vermes.

Lá na frente, na outra esquina, tento esquecer os olhos dos pobres, como no poema de Charles Baudelaire, enquanto o chope gelado desce pelo “escorregador da garganta”, nome que Maria Antonia, aos quatro anos, deu a isso que chamamos de esôfago. O chope se espalha numa maravilhosa sensação de prazer, bem distante da culpa natural, muito além dos ‘conquistadores da natureza’ como Zilboorg classificaria os dois homens famintos.

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