domingo, 25 de janeiro de 2015

RIO PRETO D - SIMONSEN 3

Publicado no JORNAL DE HOJE em 25/01



Era uma casa enorme, feita de tijolos vermelhos e sem reboco. Suas telhas coloniais pareciam bem mais velhas do que na verdade eram. Não havia forro e as paredes terminavam bem abaixo do telhado. Não havia também iluminação elétrica. À noite, a claridade vinha de uma bruxuleante luz de lamparinas a querosene.

Havia um grande quintal onde aproveitamos para plantar milho, mandioca, feijão guandu, orelha-de-padre, abóboras e batata doce. Galinhas ciscavam livres no terreiro. Do lado de fora, um fogão a lenha onde minha mãe preparava comida. Ao lado, um jirau de madeira para lavar os trens de cozinha. Uma cisterna fornecia água que usávamos para tudo, desde o consumo. Mais afastado, talvez uns dez metros, havia a privada: uma casinha dos mesmos tijolos vermelhos, com um buraco no chão, onde fazíamos as necessidades fisiológicas.

Andando pela estrada, a menos de cinquenta metros, estava o cemitério de Simonsen, com seu muro baixo, espremido entre a estrada de terra e a estrada de ferro. Vindo da Igreja, a nossa casa ficava à esquerda, logo depois da casa dos japoneses. Os postes de luz iluminavam até a casa deles, que ao lado tinha uma máquina de beneficiar arroz. Eu tinha medo do japonês adulto, que repuxava o corpo quando andava. De lá até em casa a escuridão tomava conta à noite.

Dormir era um tormento. Mal caia a noite os percevejos desciam pela parede formando uma enorme cortina negra. Milhares de percevejos em sua insaciável sede de sangue. Por mais que minha mãe espargisse veneno, nada exterminava aquela praga. Extenuados, acabávamos dormindo de cansaço, enquanto os percevejos banqueteavam-se com nosso sangue juvenil. Quando o dia amanhecia tínhamos a pele toda salpicada de pelotas deixadas pelas sanguessugas noturnas – malditos cimex lectularius.

Um dia meu pai enlouqueceu. Trouxe um galão de gasolina. Afastou os poucos móveis e as camas e colocou todos nós para fora. Quando os malditos despontaram, ele molhou as paredes com gasolina e tacou fogo. Era fantasmagórico ouvir os percevejos explodindo como traques em festas juninas. Com a garrafa de pinga na mão, e sem camisa, meu pai gritava com eles. O fogo queimou milhões de percevejos naquela noite. Mas quem disse que eles foram exterminados!

Excetuando os percevejos a casa era fresca, de chão batido. Havia uma fartura de mistura que colhíamos no quintal. Aprendemos a apreciar uma boa farofa de feijão guandu, mas nunca consegui gostar de orelha-de-padre. Talvez porque ela era como cebola crua: tinha aquele estalo de percevejo estralando ao fogo da gasolina.

Numa noite dessas, quente noite de verão, apareceram uns jovens com um garrafão de cachaça e duas galinhas. Minha mãe levantou para fazer uma galinhada para eles, enquanto contavam piadas e bebiam cachaça com meu pai. Nós, crianças, pulamos da cama para ouvir os adultos. Um deles armou uma vitrola e pôs um LP de Martinho da Vila, com “O Pequeno Burguês”. Música, prosa, risos ecoaram madrugada adentro até que a comida acabou e o garrafão de pinga secou. E então fomos dormir com nossos companheiros percevejos, embalados pelo samba manhoso de Martinho.

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