sábado, 14 de fevereiro de 2015

RIO PRETO D - DEVANEIOS

Publicado no JORNAL D HOJE 14/02/15





Não existe nada mais espinhoso do que uma viagem para dentro de si mesmo. Freud, Jung e todos os demais, sejam ou não do círculo de Viena, sabem disso. Sabiam e continuam sabendo porque eles vivem nas suas obras, nos seus ensinamentos.

Viver além do ordinário, para além dos limites oculares, fazer da vida uma festa fitzgeraldiana, como quem percorre as ruas glamorosas de Paris em busca daquela alegria fugidia de Nicole Warren ou daquele sonho impetuoso de Gatsby ou das loucuras de Lady Brett Ashley... Não, nada disso escapou das páginas amareladas dos romances. Apenas a vida se encafuou num canto qualquer de leituras.

O moço observa os pássaros. Eles chegam sempre pela manhã fazendo uma enorme algazarra. São pássaros que sabem cantar. Não tem a desenvoltura lírica de um canário ou de um curió. Mas fazem um barulho ensurdecedor, principalmente para quem acordou de ressaca, pedindo paz e sossego. Ainda bem que naquela noite ele não exagerou na bebida; apenas bebericou um single malt Cardhu. Duas doses caprichadas, sem gelo para não estragar o paladar. Água de coco bem gelada ao lado, para equilibrar.

Lembrou do whisky. Seu líquido dourado, de olfato complexo, com aquele gosto final rescendendo a maltes. Uma experiência palatável inigualável. Sentiu o sabor delicado e frutado passeando imaginariamente na sua língua. Como é que um whisky poderia ser tão bom! O cérebro imediatamente respondeu: é o único whisky fabricado por uma mulher, a partir de 1824. Leve, delicado e frutado, como uma mulher madura.

Ele queria estar em Paris. Sempre sonhou em conhecer Paris. Talvez por causa dos livros; mais precisamente por causa de Jean Valjean e das comunas de Paris. Sonhou navegar pelo Sena, espairecer num café de algum boulevard à sombra da torre Eiffel... Morar em Paris, assim como os seus escritores preferidos. De Alexandre Dumas a James Joyce. O tempo passou e ele nem em Parisi esteve.

Agora, ali na praia de Juqueí ele pensa em tudo, enquanto as saíras visitam os pedaços de mamão, melancia, goiaba, banana... num alvoroço sem tamanho. Elas saltitam aqui e ali, disputam espaços para os pardais. Observa uma saíra azul, um lindo pássaro que cor inimitável. Dai a pouco, chega um verde. Um verde indescritível.

Seu olhar vagueia sobre o mar e o mar, com suas ondas, esconde um mundo que não conhecemos. Como o rabino Nilton Bonder tenta explicar sobre o oculto do oculto. Que universo está escondido nas profundezas dos oceanos! Neste devaneio, o moço deixa a mente vagar tranquila pelas sendas impenetráveis do espírito – ou, são elas permeáveis e facilmente arrebatáveis?

Ele não sabe. Há muito tempo perdeu a capacidade de se embolar espiritualmente com o belo. Há anos deixou-se dominar pelo materialismo e agora só restam rápidas e superficiais visitas ao interior de si mesmo; viagem essa que termina de forma abrupta toda vez que qualquer significante chame a atenção para suas trevas interiores. Sem ousar desafiar, submete-se ao sacolejar das rodas da carruagem, esperando que as abóboras se acomodem e ele possa dar uma de leitão para mamar deitado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário