segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

RIO PRETO D - O REPOUSO DE ULISSES

Publicano no JORNAL DE HOJE




Por muitos anos Ulisses repousou, inerte e quieto. Nem mesmo o fato de ter sido parido por Houaiss me fez procura-lo. Nem mesmo quando um professor-doutor do Ibilce escreveu uma carta ao jornal dizendo que Joyce era muito chato. Não, nada me fez levantar a bunda da cadeira para encarar Ulisses. Era muito grande, um calhamaço de quase cinco centímetros. Uma enorme brochura de 850 páginas, com capa de rabiscos de lápis de cor dos quais sobressaiam o verde e o marrom, com fundo amarelado. E uma foto três por quatro de Joyce. Na capa, concorrendo com o autor, em 90 graus, o nome do tradutor: Antônio Houaiss.

Antes de Ulisses, flertei com os contos de James Joyce. Dublinenses. Sempre sonhei em um dia escrever Cosmoramenses. E Riopretenses (sem hífen). Mas como escrever que não há cobras em Cosmorama? Como olhar Cosmorama com os olhos que Joyce deitou sobre Dublin, Belfast... Como captar a gana de felicidade de Eveline e todo o desvario em busca do marinheiro Frank...? Talvez contar a história de Sonia, branquinha de pernas grossas e olhos claros, atirada ao meretrício pelo pai após o abandono vil do namorado e o rapto familiar de sua filha recém-nascida? Tôque, tôque, tôque... (não é toque) a humilhação veste o imaculado lençol da moralidade. 

Joyce saberia por onde Sonia tropeçou pelos subterrâneos da vida. Saberia que o namorado vil morreu de câncer e está enterrado, roído e corroído pelos vermes e em pó tornaram-se seus ossos, seu orgulho e sua virilidade. Mas, e, Sônia? Onde ela soterrou seus abusados sonhos? Grávida do moço quase rico, de tradicional família citadina, com quem talvez tenha sonhado casar-se e dar-lhe mais filhos... Joyce não seria vulgar ao narrar sua história bela e triste e tão irlandesa apesar de.

Hoje Joyce faz aniversário. E lá está na estante de aço, pintada de vermelho, Ulisses repousando, com Leopold, Stephen, Buck e Mary e todas as putas da Irlanda, com ele trancafiados. Quem sabe padre Cowley derrame sobre todos nós – sobre todos bêbados e saqueiros de Cosmorama, a água benta a espargir perdões aos santos e aos pecadores. Meu pai dizia que os santos eram os maiores pecadores. E citava, todo-todo, com sua sabedoria de Almanaque Catarinense, o nome de Santo Agostinho. Esse sim era um santo que valia a pena ser venerado e bebido. Não há nada mais salutar para a alma que beber para o santo. Um golinho pra ele, um golão para nós. Meu pai era devoto de Santo Agostinho e todos os demais santos que compunham o imaginário popular. Olimpiobloom... talvez.

Retirei, em homenagem ao seu aniversário, o Ulisses que repousava há mais de vinte anos na prateleira, porém, nos últimos anos, ganhou novos vizinhos: Manuel Castells e Woyne Figner Sacchetin. Penso, não sei, mas Figner deve ser irlandês. Em todo caso, dois livros bem distintos que, aparentemente, não se ligam nem se encontram com Joyce e seu Ulisses. Não há Joyce em Castells.



Minto sobre Joyce. Li seu Ulisses em 1984, esse mesmo volume de Houaiss, que ora repousa tranquilo e impassível e infalível como Bruce Lee (como canta Caetano). Não achei chato como queria que eu achasse o professor ibilciano. Talvez eu releia Ulisses agora, mas com outros olhos e outros motivos que não o de simples leitor.

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