terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

RIO PRETO D - PERDAS E GANHOS

Publicado no JORNAL DE HOJE em 10/02/2015



“todo era uma inocente flecha em tránsito de lucidez y muerte.” – Javier Sologuren, poeta peruano

Eu não sou poeta. Por mais que meu amigo grande João Baptista Crenith Junior insista, eu definitivamente poeta não sou. Entretanto, gosto de poesia. Gosto de ler, saborear a poesia como quem degusta um bom merlot chileno. Acho que a poesia, mais que a prosa, revela a essência romântica de um povo, permite conhecer sua alma, aquilo que está na subjacência interior do povo, que não é revelada na ponta das baionetas ou no desfraldar das bandeiras. Todos os povos escrevem poemas, alguns até falam versejando, declamando, rimando, recitando versos sejam eles pobres ou não. Eu creio, assim como Javier Sologuren, que a poesia revela a essência da existência do homem. Como eu gostaria de escrever poesias!

O verso que encima este artigo, ou crônica, ou sei lá o que, eu o tirei do poema “Dédalo Dormindo”, escrito em Lima, em 1947, por Sologuren. Este verso eu o saquei da poesia porque foi assim que chegou na manhã de Natal a flecha livre e mortal que roubou do nosso convívio Arnaldo Lucato. Nós, Arnaldo e eu, tínhamos um sonho. Sonhávamos montar uma escola de samba para disputar um dia o carnaval de rua com a Unidos da Boa Vista, do grande mestre João Negrão. Seria a Acadêmicos da Felicidade. Mas antes, conforme combinamos uma vez na Fazenda Santa Cedônia, ouvindo uns bons sambas de Adoniram Barbosa, iríamos todos ver o carnaval na Sapucaí, para animar a inspiração.

A flecha da morte foi inclemente no seu trânsito sem lucidez. Arnaldo lutava para viver após um transplante de rim. Mas foi o coração que parou.

Fechando o ano é hora de fechar o balanço dos dias. Colocar na balança nossos atos e decisões, nossas perdas e nossos ganhos. No prato dos ganhos vão as festas que você fez, os livros que leu, os filmes que viu, a caridade que praticou, os sorrisos e as gargalhadas que estamparam seu rosto e os novos amigos que chegaram. No prato das perdas vamos colocar as dores e as tristezas, os amigos e pessoas queridas que perdemos, nossas incertezas e nossos medos, para que desapareçam. Todos os pratos devem se inclinar para os ganhos, todavia, caso se inclinem para as perdas, lembre-se que são perdas, portanto, perdidas estão.

Hoje é dia de descarregar o saco de pedras que trazemos amarrados na cintura. Retirar as pedras, aliviar o percurso dos dias que virão, limpar os olhos, seca-los com lenço de cambraia. É dia de lavar a cabeça demoradamente e de derramar sobre ela os óleos santos, os perfumes mais caros e cobrir o corpo com a melhor roupa, aquela da missa, ou do culto, de domingo. Hoje é dia de perdão. De todos os perdões. É o dia em que devemos nos perdoar a nós mesmos e perdoar os outros. Hoje é dia de lembramos de todos os nossos dias felizes, desde os mais remotos dias, para que possamos entrar o novo ano de alma renovada.

Hoje é o dia de entrar no quarto escuro, taramelar a porta por dentro, ajoelhar no cantinho mais escondido, como mandou Jesus Cristo, em Mateus, capítulo 6, versículos de 5 a 8, e erguer a voz para o Pai, acertar as contas com Ele, pedir perdão por todas as vezes que esquecemos da Sua presença na nossa vida. Porque, amanhã, quando o dia raiar, assim como raiaram nos últimos milhares de anos, eu quero devolver a flecha a Dédalo, com seu trânsito lúcido e carregado de seiva da vida e do brilho da esperança. (Cedral, SP, 5 de outubro de 2013)

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