sábado, 7 de março de 2015

RIO PRETO D - A MULHER DA CASA AO LADO

Publicado no JORNAL D HOJE



Brincávamos num quintal, um bando de meninos, por volta das quatro da tarde. De lá, depois, era só pular o muro para entrar no campo de futebol. Eu, particularmente, era perna de pau, mas sempre havia uma vaga nesse ou naquele time; em especial vaga de goleiro. Naquele tempo era assim: se o cara era ruim de bola metiam-no sob as traves. Acho isso perfeitamente plausível já que o espetáculo do futebol é o gol. Se o goleiro é muito bom o gol não acontece. Aliás, o futebol não devia ter goleiro, os gols seriam marcados por quem tivesse melhor pontaria. Outra posição em que cabiam cabeças de bagre era a lateral; qualquer uma. Cansei de jogar na lateral esquerda sem ser canhoto; aliás, não sei chutar nem com a direita. 

Aquela tarde parecia diferente. Hoje, olhando de longe os acontecimentos, tenho a impressão de que o ar estava mormacento, como se as horas estivessem suspensas. O calor era sufocante. A casa do lado, entre o quintal que nos abrigava e o muro do campo, estava fechada. Nossa algazarra de moleques foi surpreendida com o barulho de estampidos. Um, dois, três, quatro, cinco, seis tiros estouraram no ar. Vimos, de repente, a porta dos fundos da casa se abrir e um homem nu e descalço correr e pular o muro.

Éramos moleques, mas não éramos bobos. Ficamos na moita, escondidos, fustigados por uma curiosidade letal. Ao meu lado, um garoto de pele branca e olhos escuros - filho do homem armado, chorava assustado. Regulávamos a idade. Entrei com ele na casa, pela porta dos fundos, tremendo de medo. O que vimos até hoje me persegue. O pai dele, em convulsões, abraçava a mulher nua e ensanguentada, soltando urros que a vizinhança toda ouvia. Havia no seu rosto um olhar inenarrável, um misto de desespero, dor e loucura. Assustados, saímos do quarto. O menino gritava incontrolavelmente e uma vizinha o abraçou, levando-o para sua casa. Quando a polícia chegou o homem havia desaparecido.

Levaram o corpo da mulher assassinada; para autópsia, disseram. As duas filhas, mocinhas na flor da adolescência, cuidaram do velório da mãe. Um velório pobre, de caixão barato. O pai, o matador, não esteve presente. Estava homiziado, quem sabe lambendo suas dores e remorsos. Apresentou-se dois depois na delegacia, acompanhado de um advogado. Logo foi posto em liberdade e em liberdade respondeu ao inquérito e foi a julgamento. Em liberdade permaneceu porque seu crime fora motivado pela honra violada. Voltou para casa e tocou a vida, aparentemente como se nada tivesse acontecido.

Aquele que fugiu entrou para o folclore masculino. O cara que comeu a mulher do outro e escapou de quatro tiros. Duas balas enterraram-se nas costas da mulher que copulava. O intrépido e fervoroso amante saiu impune, incensado como herói dos machos da cidade. Por anos a fio a cidade esperou que o marido traído acertasse suas contas com o amante da mulher assassinada. Mas eles desviavam de calçada, um pra lá outro pra cá. Era como se a mulher fosse culpada sozinha.

Passado tanto tempo, é como se fosse ontem. Uma cena grotesca, aquele homem ajoelhado e urrando feito animal ferido, ao lado da mulher que lhe dera três filhos e agora jazia ali, inerte, baleada, vítima de uma sociedade que punia com morte o adultério feminino e colocava no pedestal o homem sedutor e adúltero.

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