Daqui dois meses faço sessenta anos.
Ontem, pensando nisso, fiquei muito triste, até mesmo
acabrunhado.
Na minha cabeça, minha vida não havia valido a pena.
Fui dormir entristecido e tive um sonho.
Um sonho às margens de uma cachoeira linda, de águas
translúcidas.
Conheço muitas cachoeiras, nunca havia visto uma igual.
Nesta cachoeira havia uma Vênus e um garoto.
Ambos nus e felizes. E havia eu.
Talvez o garoto fosse eu mesmo. E a Vênus a vida.
Talvez a Vênus fosse a junção das mulheres que me deram
seu amor.
Maravilhosas mulheres que me ensinaram a viver.
Me ensinaram a chorar e a rir e a cantar e a sonhar...
Com cada uma delas eu aprendi alguma coisa boa.
E como diz o belo samba de Roberto Ribeiro:
— Perdi a conta das mulheres que beijei.
Mas agora cheguei ao sessenta.
O sonho me mostrou a felicidade da infância.
Quanta liberdade desfrutei nos quintais cosmoramenses!
Penso que pouca gente teve uma infância tão livre.
Foi sim uma infância pobre e difícil, mas foi ela que me moldou.
Moldou meu caráter, amalgamou em mim o sentido da gratidão.
A adolescência em Cosmorama foi a benção que Deus me deu.
Meus amigos e eu crescemos longe das drogas.
Tivemos uma formação lúdica, carregada de proteção
familiar.
Comecei a trabalhar aos nove anos, vendendo verduras e
sorvetes,
Engraxando sapatos, capinando quintais e fazendo pães...
Limpando cadeiras de cinema e varando lona de circos!
Jogando biroca, nadando em córregos e brigando e
apanhando nas ruas!
Será que este tempo voltará um dia?
Jovem, fui ao footing, aos campos de futebol, às paqueras
nos bailes!
Levei tábuas e tombos, aprendi a beber e a fumar para me
enturmar.
Na madrugada, ouvindo rádio na padaria, aprendi a amar o
samba.
Na roça, trabalhando de birolo (boia fria) aprendi a amar
a música caipira.
Com os amigos mais intelectualizados aprendi a amar a
MPB.
Nos livros, aprendi a amar a música erudita.
Ah... os livros. Eles salvaram a minha vida.
Os livros estão na minha companhia desde os seis anos
quando ganhei uma Revista Jacques Douglas.
Quem seria eu sem os livros?
Eles me ensinaram a falar e abriram as portas do mundo
para eu viver.
Daqui dois meses eu faço sessenta anos.
O sonho com a Vênus me mostrou muito mais que isso.
Mostrou que a vida me deu muito mais do que eu pedi.
Como cantou Ataulfo Alves: eu era feliz e não sabia.
Aliás, sou muito mais feliz do que penso que sou.
E foi assim que surgiu este manifesto ao som de O Poder
da Criação, de João Nogueira.
Sim. Sou feliz. Sou um homem com os pés em dois séculos.
Eu vivi toda a transformação do mundo atual.
Eu vi televisão em preto e branco.
Escrevi em máquina de escrever;
Fiz jornal em mimeógrafo.
Cópias com papel stencil (é assim que escreve?).
Ah... mas isso são apenas recordações de saudosismo.
Curto saudosismo apenas para contar histórias.
Eu sou isso: um contador de histórias.
Plantei árvores.
Tenho uma linda filha de inteligência ímpar.
Conheço o Brasil do Monte Caburaí ao Arroio do Chuí.
Menti. Traí.
Assim como mentiram para mim.
Traíram-me — em todos os sentidos.
Amei e sei que fui amado. E não uma única vez.
Chorei e fiz chorar.
Ri e fiz rir.
Ajudei e fui ajudado.
Roubei e matei.
Roubei em estado falimentar quando criança.
Matei um homem atropelado numa noite de chuva.
É uma nódoa que carrego na alma. E carregarei para
sempre.
Vivi e morri muitas vidas nesta vida.
Corri riscos. Salvei pessoas. Fui salvo por pessoas.
Fui católico praticante. E fui ateu. E depois voltei a
crer.
Frequentei botecos, zonas de meretrício, restaurantes
chiques.
Partilhei momentos fantásticos neste caminho.
Deixei pessoas para trás, assim como também fui deixado.
Estive entre os poderosos e entre os mendigos.
Dormi em cinco estrelas e também em albergue noturno.
Lagosta, caviar, champange, talheres de prata e taças de
cristal,
Cabo-de-reio, meio arroz ou nada na marmita feita de lata
de goiabada...
Sonhei, sonho, sonharei...
Daqui a dois meses faço sessenta.
E sou daquelas pessoas que, de tanto viver, não se
enxergam.
Eu não me enxergo velho; não me vejo entregando os
pontos.
Se a doença não me tolher o caminho.
Se os acidentes não me virem por aí.
Se eu não esmorecer.
Se Deus me permitir, tenho ainda quinze anos de vida útil
pela frente.
E quero fazer desses quinze anos uma vida em plenitude.
Efervescência. Florescência. Renascença. Tudo assim.
Grandes projetos e sonhos maiores ainda.
Cinquenta em quinze.
Quero sim, e este é o manifesto:
Viver cinquenta anos em quinze.
Novos sonhos. Novos planos.
Uma vida intensa e plena é o que quero.
E Deus quer.
E aos amigos, eu digo: venham, bebam e comam comigo.
Não tenham medo de serem felizes.
Aos meus inimigos eu ouso escrever um palavrão: Fodam-se.
Vocês não pagam minhas contam nem colocam comida na minha
mesa.
Mas, tanto aos amigos quanto aos inimigos, eu peço: vivam
e deixem viver.
A vida é curta e como cantou Vinicius: não sabemos se tem
outra.
19 de abril de 2019 – 15h58
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